É manhã. A janela de vidro, assim como as
cortinas, está fechada. Ruídos de automóveis, buzinas abafadas e vozes variadas
tentam, em vão, invadir o cômodo e perturbar o tranquilo sono de Marcel e Tássia.
O casal, abraçado, dorme sobre lençóis claros numa cama ampla. Não estão
cobertos nem por roupas, nem por mantas. Faz calor. Os corpos nus, vez ou
outra, se entrelaçam em movimentos quase sincronizados. A energia flui.
Sentem-se inconscientemente plenos e protegidos.
Porém,
de um momento ao outro, três batidas preenchem o cômodo. Tássia acorda. Após
sair dos braços de Marcel, se espreguiça e levanta. Ele tenta, desjeitoso,
abraçá-la novamente. Não conseguindo, volta a dormir. Ela acompanha o som das
batidas, agora ininterrupto. Vai à janela, abrindo delicadamente as cortinas
para não acordar o namorado. Um pequeno pássaro de espécie desconhecida,
semelhante a um beija-flor, aproxima, vagaroso, o bico do vidro e o acerta
inúmeras vezes. As penas azuladas refletem os raios de sol. É lindíssimo! Tássia
jamais viu algo assim. “Preciso pegá-lo”, pensa enfeitiçada. Abre o resto das
cortinas e janela. Com um gesto rápido, tenta prendê-lo entre os dedos. Ele se
afasta um pouco.
_ Vem aqui! – pede, se debruçando.
O
pássaro recua mais.
Na
ponta dos pés, ela se inclina, convidando-o a pousar na palma da sua mão
direita. Ele desce, parando próximo à janela do apartamento de baixo. “É
impossível agarrá-lo”, deduz insatisfeita.
Sem
pudor ou preocupação, sobe no parapeito e se assenta com as pernas para fora,
chamando-o.
Nesse
momento, Marcel acorda. Ainda zonzo de sono, abre os olhos e, ao ver o que
acontece, salta da cama, perguntando:
_ O quê está fazendo aí, louca?
Ela, percebendo o olhar aflito do rapaz e sua intenção, pondera: ele vai
me tirar daqui. Ou me jogo sobre o pássaro ou jamais vou tê-lo.
Sem
pensar novamente, flexiona braços e quadris. Atira-se. É o 18º andar. O prédio
está numa das avenidas mais movimentadas da cidade. Amanhã, os jornais
noticiaram o suicídio. Os pais buscarão uma explicação, enquanto os traunsentes
ainda estarão em choque – revendo tripas espalhadas por todas as direções,
lambuzando seus braços, seus rostos, suas crianças.
Marcel emite um grunhido de horror. Joga-se para trás e assenta na cama.
Não acredita no que viu. Está pálido. Faz pouco se amaram, dormiram. Ela estava
tão feliz! “É um pesadelo”, pensa e se levanta. Pé ante pé, caminha até a
janela. Se for mesmo um sonho ruim, ao vislumbrar os restos de Tássia, acordará.
É sempre assim.
Antes
que termine o caminho, um corvo sujo e mal cheiroso se apressa pela janela e para
sobre uma poltrona, crocitando. Marcel treme. Todos os pêlos do seu corpo se
arrepiam. Uma gargalhada debochada corta o ambiente e o chocalhar de uma cascavel
ecoa por todas as direções. Ele paralisa ao mesmo tempo em que cinco dedos
gélidos pousam suaves sobre seu pescoço.
_ Pensou que ia se ver livre de mim,
querido? – pergunta uma voz feminina, crapulosa.
Marcel morde o lábio inferior e sente gotas de suor deslizarem pelas
laterais do corpo. O batimento cardíaco acelera. O chocalhar, mais uma vez,
flutua pelo ambiente. Ele conhece aquela voz. É de Carla – sua ex-namorada, desaparecida
desde que viu ele e Tássia de mãos dadas há mais de um ano.
Tentando se acalmar, respira fundo e vira, tampando o sexo com as mãos.
O que vê faz suas pernas bambearem. A garota, pálida e magra, sorri jocosamente.
Os cabelos negros e lisos escorrem pelos ombros e, juntos com calça e camiseta da
mesma cor, contrastam com a pele. Os olhos estão vermelhos, cruéis e doloridos.
Uma cascavel negra se enrosca pelo pescoço. Sibila.
_ Como você entrou aqui? – pergunta Marcel.
A voz fraca está dominada por pânico
_ Portas e paredes não fazem muita
diferença quando estamos mortos – responde, fitando-o de forma demoníaca.
_ Como assim?
_ Estou morta, amor. Há um ano me matei.
Pensava que assim, os problemas se resolveriam.
_ Não é possível! Isso só pode ser
brincadeira...
_ Veja! – ordena.
Com
as unhas, dá leves batidas nas escamas da cobra. O animal desce por seu tronco
e para sobre seus pés. Um cheiro forte e azedo de putrefação penetra as narinas
de Marcel. Com uma mão, ele tapa o nariz e a outra mantém sobre o sexo, agora
um pouco a mostra. O pescoço esverdeado e podre de Carla se exibe: um corte
profundo e roxo o atravessa em horizontal. Cascas de sangue coagulado, vermes
de várias tonalidades e insetos indescritíveis fazem dali sua fonte de
alimentação.
Um
par de antenas, logo acompanhado por uma barata, sai da ferida e voa em direção
a janela. O corvo bate asas e abocanha a pequena criatura. Marcel pressiona com
mais força o nariz e abaixa os olhos. Todo seu estômago se revira. Arrepia de
nojo. Jamais viu algo tão repulsivo.
_ É o preço que se paga por ser suicida –
anuncia Carla com um tom entre pesaroso e irônico –, carregarei a marca por
toda a eternidade – e ri, em seguida.
Marcel deixa algumas lágrimas escaparem. O medo e a sensação de culpa
massacram seu íntimo. Como permitira que as coisas chegassem a esse ponto? Quem
ali se exibe, está longe de ser a menina doce que conhecera. Onde fora parar o
brilho dos olhos castanhos, o sorriso mais belo que já vira, a risada alegre? Sabia
que a recuperação de Carla seria difícil, mas nunca imaginou que se mataria.
Pensara que havia fugido, mudado de cidade. Até se preocupara.
A
suicida o encara com voracidade por alguns instantes, lendo os pensamentos.
Repentinamente, gargalha. O réptil rasteja pelo assoalho.
_ Querido, você sabe a resposta para todas
essas perguntas! Tudo isso aí acabou no dia em que, simplesmente, você disse
que já não me queria mais, que meu corpo não o atraia como antes, que ao meu
lado não seria feliz. O quê faltou, Marcel? – indaga. – O quê me faltou para
ser boa o suficiente?
O
rapaz percebe que a cobra vem em sua direção. Dá três passos para trás, se
encostando à parede.
_ Nada! Absolutamente, nada – suspira,
ainda chorando. – O problema foi eu e minhas paranóias, minha inconstância. Fui
muito feliz ao seu lado, mas, de repente, o amor acabou, o desejo...
Carla caminha adiante. A cobra sibila. Ela crava as unhas nas bochechas
de Marcel. O sangue escorre. Ele tenta se soltar. Ela, porém, está forte, impermeável
como uma rocha. Gotas vermelhas caem no chão. A cascavel se remexe, subindo
pelas pernas do rapaz e se enroscando ao redor do tronco. Ele grita,
desesperado.
_ Você vai ter muito tempo para reavaliar o
seu conceito de amor e perceber que não sou lixo para ser descartada como um brinquedo
velho.
Alguém toca a campanhia.
_ Vamos! – continua Carla. – O inferno nos
espera. Não temos tempo.
A
cascavel aperta o tronco de Marcel. Ele pede por socorro. Sem demora, geme e
silencia. Os ossos estalam, se quebrando. Sangue escorre por olhos, boca e ânus.
O réptil faz o mesmo com todas as outras partes do corpo. Esmaga. Ao terminar,
volta ao pescoço da dona e somem pelo corredor. O corvo se posta diante da
massa de carne e ossos triturados. Parece contente. Vai se alimentar.
3 comentários:
Nooooooooooossa, de arrepiar, Rafa.
Que meeeeeeedo o.O
Amei a história. Vou tomar cuidado com os meus exs hahahahahaha.
Isso, Naty... Fique sempre alerta para qualquer movimento esquisito :P Hahaha
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