quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Vingança de uma Suicida

 


É manhã. A janela de vidro, assim como as cortinas, está fechada. Ruídos de automóveis, buzinas abafadas e vozes variadas tentam, em vão, invadir o cômodo e perturbar o tranquilo sono de Marcel e Tássia. O casal, abraçado, dorme sobre lençóis claros numa cama ampla. Não estão cobertos nem por roupas, nem por mantas. Faz calor. Os corpos nus, vez ou outra, se entrelaçam em movimentos quase sincronizados. A energia flui. Sentem-se inconscientemente plenos e protegidos.
   Porém, de um momento ao outro, três batidas preenchem o cômodo. Tássia acorda. Após sair dos braços de Marcel, se espreguiça e levanta. Ele tenta, desjeitoso, abraçá-la novamente. Não conseguindo, volta a dormir. Ela acompanha o som das batidas, agora ininterrupto. Vai à janela, abrindo delicadamente as cortinas para não acordar o namorado. Um pequeno pássaro de espécie desconhecida, semelhante a um beija-flor, aproxima, vagaroso, o bico do vidro e o acerta inúmeras vezes. As penas azuladas refletem os raios de sol. É lindíssimo! Tássia jamais viu algo assim. “Preciso pegá-lo”, pensa enfeitiçada. Abre o resto das cortinas e janela. Com um gesto rápido, tenta prendê-lo entre os dedos. Ele se afasta um pouco.
_ Vem aqui! – pede, se debruçando.
   O pássaro recua mais.
   Na ponta dos pés, ela se inclina, convidando-o a pousar na palma da sua mão direita. Ele desce, parando próximo à janela do apartamento de baixo. “É impossível agarrá-lo”, deduz insatisfeita.
   Sem pudor ou preocupação, sobe no parapeito e se assenta com as pernas para fora, chamando-o.
   Nesse momento, Marcel acorda. Ainda zonzo de sono, abre os olhos e, ao ver o que acontece, salta da cama, perguntando:  
_ O quê está fazendo aí, louca?
   Ela, percebendo o olhar aflito do rapaz e sua intenção, pondera: ele vai me tirar daqui. Ou me jogo sobre o pássaro ou jamais vou tê-lo.
   Sem pensar novamente, flexiona braços e quadris. Atira-se. É o 18º andar. O prédio está numa das avenidas mais movimentadas da cidade. Amanhã, os jornais noticiaram o suicídio. Os pais buscarão uma explicação, enquanto os traunsentes ainda estarão em choque – revendo tripas espalhadas por todas as direções, lambuzando seus braços, seus rostos, suas crianças.   
   Marcel emite um grunhido de horror. Joga-se para trás e assenta na cama. Não acredita no que viu. Está pálido. Faz pouco se amaram, dormiram. Ela estava tão feliz! “É um pesadelo”, pensa e se levanta. Pé ante pé, caminha até a janela. Se for mesmo um sonho ruim, ao vislumbrar os restos de Tássia, acordará. É sempre assim.  
   Antes que termine o caminho, um corvo sujo e mal cheiroso se apressa pela janela e para sobre uma poltrona, crocitando. Marcel treme. Todos os pêlos do seu corpo se arrepiam. Uma gargalhada debochada corta o ambiente e o chocalhar de uma cascavel ecoa por todas as direções. Ele paralisa ao mesmo tempo em que cinco dedos gélidos pousam suaves sobre seu pescoço.
_ Pensou que ia se ver livre de mim, querido? – pergunta uma voz feminina, crapulosa.    
   Marcel morde o lábio inferior e sente gotas de suor deslizarem pelas laterais do corpo. O batimento cardíaco acelera. O chocalhar, mais uma vez, flutua pelo ambiente. Ele conhece aquela voz. É de Carla – sua ex-namorada, desaparecida desde que viu ele e Tássia de mãos dadas há mais de um ano.  
   Tentando se acalmar, respira fundo e vira, tampando o sexo com as mãos. O que vê faz suas pernas bambearem. A garota, pálida e magra, sorri jocosamente. Os cabelos negros e lisos escorrem pelos ombros e, juntos com calça e camiseta da mesma cor, contrastam com a pele. Os olhos estão vermelhos, cruéis e doloridos. Uma cascavel negra se enrosca pelo pescoço. Sibila.
_ Como você entrou aqui? – pergunta Marcel. A voz fraca está dominada por pânico
_ Portas e paredes não fazem muita diferença quando estamos mortos – responde, fitando-o de forma demoníaca.
_ Como assim?
_ Estou morta, amor. Há um ano me matei. Pensava que assim, os problemas se resolveriam.
_ Não é possível! Isso só pode ser brincadeira...
_ Veja! – ordena.
   Com as unhas, dá leves batidas nas escamas da cobra. O animal desce por seu tronco e para sobre seus pés. Um cheiro forte e azedo de putrefação penetra as narinas de Marcel. Com uma mão, ele tapa o nariz e a outra mantém sobre o sexo, agora um pouco a mostra. O pescoço esverdeado e podre de Carla se exibe: um corte profundo e roxo o atravessa em horizontal. Cascas de sangue coagulado, vermes de várias tonalidades e insetos indescritíveis fazem dali sua fonte de alimentação.
   Um par de antenas, logo acompanhado por uma barata, sai da ferida e voa em direção a janela. O corvo bate asas e abocanha a pequena criatura. Marcel pressiona com mais força o nariz e abaixa os olhos. Todo seu estômago se revira. Arrepia de nojo. Jamais viu algo tão repulsivo.
_ É o preço que se paga por ser suicida – anuncia Carla com um tom entre pesaroso e irônico –, carregarei a marca por toda a eternidade – e ri, em seguida.
   Marcel deixa algumas lágrimas escaparem. O medo e a sensação de culpa massacram seu íntimo. Como permitira que as coisas chegassem a esse ponto? Quem ali se exibe, está longe de ser a menina doce que conhecera. Onde fora parar o brilho dos olhos castanhos, o sorriso mais belo que já vira, a risada alegre? Sabia que a recuperação de Carla seria difícil, mas nunca imaginou que se mataria. Pensara que havia fugido, mudado de cidade. Até se preocupara.
   A suicida o encara com voracidade por alguns instantes, lendo os pensamentos. Repentinamente, gargalha. O réptil rasteja pelo assoalho.
_ Querido, você sabe a resposta para todas essas perguntas! Tudo isso aí acabou no dia em que, simplesmente, você disse que já não me queria mais, que meu corpo não o atraia como antes, que ao meu lado não seria feliz. O quê faltou, Marcel? – indaga. – O quê me faltou para ser boa o suficiente?
   O rapaz percebe que a cobra vem em sua direção. Dá três passos para trás, se encostando à parede.
_ Nada! Absolutamente, nada – suspira, ainda chorando. – O problema foi eu e minhas paranóias, minha inconstância. Fui muito feliz ao seu lado, mas, de repente, o amor acabou, o desejo...
   Carla caminha adiante. A cobra sibila. Ela crava as unhas nas bochechas de Marcel. O sangue escorre. Ele tenta se soltar. Ela, porém, está forte, impermeável como uma rocha. Gotas vermelhas caem no chão. A cascavel se remexe, subindo pelas pernas do rapaz e se enroscando ao redor do tronco. Ele grita, desesperado.
_ Você vai ter muito tempo para reavaliar o seu conceito de amor e perceber que não sou lixo para ser descartada como um brinquedo velho.
   Alguém toca a campanhia.
_ Vamos! – continua Carla. – O inferno nos espera. Não temos tempo.
   A cascavel aperta o tronco de Marcel. Ele pede por socorro. Sem demora, geme e silencia. Os ossos estalam, se quebrando. Sangue escorre por olhos, boca e ânus. O réptil faz o mesmo com todas as outras partes do corpo. Esmaga. Ao terminar, volta ao pescoço da dona e somem pelo corredor. O corvo se posta diante da massa de carne e ossos triturados. Parece contente. Vai se alimentar.

3 comentários:

Naty Araújo disse...

Nooooooooooossa, de arrepiar, Rafa.
Que meeeeeeedo o.O

Amei a história. Vou tomar cuidado com os meus exs hahahahahaha.

Rafael Bellozi disse...

Isso, Naty... Fique sempre alerta para qualquer movimento esquisito :P Hahaha

Rafael Bellozi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.