segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Determinantes

Naquela noite ele tinha os olhos voltados para o teto do quarto, onde observava os próprios pensamentos vagando por ali. Todas as noites ele tinha essa atitude, e era sempre uma confusão desgovernada que crescia à medida que as horas passavam.
Alguém bate na porta, e ele não responde. Já sabe quem é e o que quer dizer. Não quer ver ninguém, principalmente o seu irmão mais velho que acha que pode cuidar de tudo e de todos. Mas o seu irmão não sabe. É um mortal, como ele também é. O seu irmão não pode fazer nada neste momento.
Quando mais novos ele sempre lhe tirava das brigas, o defendia a todo custo, mas agora ele já não pode fazer isso, os seus passos escolheram outros caminhos aos quais se afastam dos caminhos mais estáveis que o seu irmão escolhera.

Ele ouve a voz do irmão do outro lado da porta, parece exausto, pede para entrar. Ele não responde, apenas encara a porta fechada.
- Não foi sua culpa. – a voz soa enfraquecida. Ele cerra os olhos como se essas palavras o perfurassem. Porque na verdade ele pensava exatamente o oposto. Era sim sua culpa. O seu pai não morreria naquela noite se não precisasse ir até a delegacia para tirá-lo de mais uma encrenca.

 Ultimamente ele andava fazendo muito disso, se envolvendo em confusões dais quais não conseguia sair por si próprio. Ultimamente lê-se a vida toda. Dezoito anos de problemas densos demais para a sua fuga. E era assim por que... Por que... Por que mesmo?
Ah, quase já não conseguia se lembrar. Foi a sua mãe que morreu quando ele ainda era muito pequeno, e crescer sem a mãe e sobe os olhos críticos de um pai de poucas palavras nunca fora fácil, mas nada disso justifica seus erros. Muita gente sabia como viver mesmo quando tudo parecia conspirar contra suas vontades. Não, a culpa não fora de sua mãe ou de seu pai. A culpa sempre foi sua. E agora, ouvindo a voz cansada do irmão do outro lado da porta, sabia que mais uma vez havia errado, e mais uma vez a culpa estava deitada sobre si.

- Abre a porta, João! – insistiu. Era impressionante o quanto o seu irmão podia ser insistente, ele nunca havia desistido dele, e já tivera incontáveis motivos para isso. Ele se levantou arrancando a lágrima que escorria pelo rosto como se tivesse raiva daquele ato. Abriu a porta e encarou o irmão sentado no chão. Os olhos em brasa, de ambos.

Seu irmão ainda estava vestido com a roupa do funeral, ele parecia extremamente cansado, afinal, passara os últimos dias resolvendo tudo sobre o acidente de carro que matara o seu pai. Por um momento pensou o quanto era difícil ser ele, e que jamais poderia ser assim.
Sentou-se do lado dele no chão, e encarou a parede clara do corredor mal iluminado.

- Escute João... – suspirou pesado – O que houve não foi culpa sua. Você não tinha como saber que isso iria acontecer, e sei que se soubesse jamais entraria em confusão naquela noite. – ele o encarava proferindo as palavras com sinceridade.
- Por que você sempre é assim? Não vê que não sou como você? Não vê que tudo o que tenho feito é estragar tudo? Eu sou destrutivo Tadeu, sempre fui. E está longe do seu alcance fazer alguma coisa para mudar isso.
- Sabe... – virou os olhos para a parede para onde João olhava. – eu não posso fazer nada a respeito, quem pode fazer é você. Você só precisa entender que o passado não pode mais ser mudado, mas que de hoje em diante tudo só depende de você. Você não é destrutivo; você escolheu ser. E eu insisto em você por que sei quem você é realmente. O menino confuso que nunca soube como crescer longe dos pais. Sei que se sentia longe do pai mesmo quando ele estava ao seu lado. Ele não sabia como lhe dar com você, João, eu nunca soube, mas eu sempre insisti em fingir saber. E sabe de onde eu tirei toda essa vontade? De nossa mãe, ela me pediu para cuidar de você, e é o que tenho feito desde então. E se ela não pedisse, eu o faria mesmo assim, você é o meu irmão, temos que cuidar um do outro.
- Mas eu não cuido de você, não há troca, eu só sei tirar e tirar. – a voz soou envergonhada. E foi a primeira vez que Tadeu viu o real arrependimento grudado no rosto do irmão.
- Pare de se culpar, as pessoas erram o tempo todo. Você pode reparar.
- Eu posso trazer o pai de volta Tadeu? Como eu posso fazer isso?
- Não... – sua voz sumiu. Estava cansado, muito cansado. Olhou para o irmão que agora chorava como o menino de oito anos que cairia da bicicleta em um dia pouco ensolarado. O abraçou sem saber o que deveria ser dito. João ficou soluçando em seu paletó preto, molhando-o com lágrimas pesadas.
- Eu sei que o pai não o culpa, ele nunca o culpou, João. E onde ele estiver agora, sei que ainda acredita em você. Nós sempre acreditamos em você. A culpa não é sua. Acredite. Mude.
Naquele momento João queria ser exatamente como o irmão. Sabia que não poderia ser como ele, mas também sabia que poderia tentar ser diferente do que andou sendo.

Ficaram em silêncio por um longo tempo, até Tadeu levantar-se e estender a mão para João.
- Eu acredito em você, agora você precisa fazer o mesmo. Você consegue?
João o olhou com admiração, lágrimas ainda escorreram por seu rosto quando ele pegou a mão do irmão e a apertou com vontade; vontade de fazer diferente; vontade de dar razão a crença que o seu irmão tem nele, e que os seus pais sempre tiveram.


* 88ª Edição conto/história - Proj. Bloínquês

Um comentário:

Unknown disse...

Ficou ótimo! :-)

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