quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Dance por mim




















- 1ª parte.
- 2º parte.



Há tempos eu não escutava uma música tão doce. Escute essa música comigo. Fossem bons tempos, eu dançaria. Não, já não danço mais. Lembro de minhas horas de treino, de minhas horas de ensaio e dos espetáculos que participei. Lembro do tempo de moça. Boa moça do cabelo castanho e escorrido. Aos 8 anos, decidi minha vida: seria bailarina. Sou russa, morei maior parte de minha vida no Brasil. Mas enfim, sou russa. E você não sabe quão imensos são os teatros de Moscou. O ballet nasceu na Rússia, entre a fidalguia e a postura dos czares que por lá reinaram. Não havia quem não se encantasse durante uma hora de apresentação. Era lindo! E como disse, descobri o ballet aos 8. Minha mãe era pobre, costureira de bairro, e trabalhava o quanto fosse possível para que nunca faltasse nada. Ganhei como presente de aniversário, uma ida a um pequeno teatro ver um espetáculo de ballet. A peça que abriu as cortinas de minha vida foi o Lago dos Cisnes. Minha mãe chorou naquela parte em que o rapaz bonito segura na cintura da moça, ela salta e num espaço de segundo estende-se pelo ar. Não lembro muito o que mais vi no espetáculo, mas a sensação daquele momento me acompanhou por minha vida inteira. No dia seguinte disse a minha mãe que queria dançar.

Minha mãe acatou a idéia e fez-me sapatilhas. Comecei treinando em casa, o primeiro passo é a postura. Livros sobre minha cabeça, meu caminhar deveria ser impecável. O segundo é a leveza, mais livros sobre a cabeça, caminhar na ponta dos pés em sapatilhas de gesso, sem demonstrar esforço. O terceiro passo é a flexibilidade. Minha mãe era muito rigorosa, exigia progresso. Sabia o que me seria cobrado e sabia que não tínhamos dinheiro para pagar aulas. Um pequeno detalhe sobre minha mãe: ela fora bailarina; largou porque precisava trabalhar. Engravidou de mim com 20 anos de um pai que nunca conheci. Mas voltando a minha história, sofri muito com as aulas de mamãe. Não esqueço nunca quando ela demonstrou um pliè. Com os calcanhares colados, e os joelhos voltados para fora, ela agachou-se pausadamente numa leveza majestosa. Como se não houvesse peso, arrastou a mão num movimento harmônico para a direita e foi levantando devagar. Mesmo marcada por tanto trabalho, havia uma dama ali dentro. Eu queria ser igual, repeti o movimento e ela me deu os parabéns. Fora quase um ano de treino doméstico, escola não era para todos, então somente dançava. Enfim chegou o tempo em que minha mãe já não podia me ensinar. Saiu um dia à procura de sua antiga professora, e implorou que me aceitasse pois não tinha dinheiro para pagar. Foi mamãe quem conseguiu o primeiro teste de minha vida.

Aconteceu em uma sexta-feira chuvosa. Mamãe bordou um vestido vermelho e com algum trabalho extra, levantou dinheiro para comprar aquela saia rodada. Já não aguentava mais repassar e repassar uma coreografia apenas regida pela voz de minha mãe. Seria naquela tarde a primeira vez que dançaria com uma música de verdade. Academia de Madame Mibrieva, não das maiores de Moscou, porém bem conceituada. Como o nome sugere, uma senhora rica administrava-a, com bastante arrogância e polidez. Após várias meninas, chegou minha vez. Entrei no palco após ser chamada por uma bancada. Após o aviso para que ficasse pronta, enfim, a canção começou. Eu tremi, como qualquer garota de 9 anos faria. Olhei mamãe sentada na platéia, e percebi que ela também cantava a música. Quantas vezes mamãe cantou para mim? Meu sonho estava em jogo, e o dela também. Não havia como fracassar, subi na ponta das sapatilhas de gesso e meu corpo dançou como já estava acostumado. Lembro da luz, lembro de ter feito tudo aérea. Do jurado de olhos fixos baforando a fumaça de um cigarro e de mamãe cantando até que acabasse. E acabou. Foi chamada a próxima menina. Fomos dispensadas. Duas semanas depois chegou-nos uma carta. Havia sido convocada não pela Academia na qual prestara minha apresentação. Mas numa outra em São Petersburgo, antiga capital do Império Russo, a Academia Imperial de Belas Artes.

Não custou para que minha mala fosse feita, poucas coisas, um colar de mamãe. Um representante da Academia a qual eu estava à caminho veio buscar-me. Mamãe me deu um abraço e disse a frase mais importante na minha vida: "Uma bailarina pode ser qualquer coisa, inclusive forte". Outro fato que vale ser dito de mamãe: ela era filha bastarda de uma família nobre russa. Após engravidar, perdera o resto da dignidade patrícia que possuía. Desde então era eu e ela. Com quase 10 anos, saí de casa para uma cidade estranha onde luxo e pompa sobrepujavam-se sobre todas as coisas. Seguiram-se 9 anos acadêmicos, de treino rigorosíssimo, de busca por perfeição. Ninguém se engane com a dança, é tão difícil como todas as outras profissões. Nesse tempo estudei e treinei, troquei correspondências com mamãe e até tive um pequeno namoro com um entregador de jornais. Mas o ballet vinha acima de tudo, vinha acima do que eu pudesse querer, do que pudesse sentir. Mas o ballet não pôde com a guerra.

A revolução russa varreu as grandes cidades como fogo. Quando o Palácio de Inverno em Moscou foi tomado e a notícia saiu nos jornais, tudo entrou em caos. Com as economias que tinha da Academia, afinal já me apresentava, avisei que não mais voltaria e peguei o primeiro trem para Moscou, eu precisava de minha mãe. Cheguei numa cidade que perecia sob bandeiras vermelhas. Não era a mesma Moscou de 9 anos antes, nem as casas, nem as cores. Segui o endereço das correspondências, a casinha estava tão igual. Bati na porta, chorei quando abri. Mamãe estava tão linda e mais envelhecida do que nunca. Posso resumir nosso reencontro com um abraço. Um longo, apertado e feliz abraço. Mas a felicidade não ficou em nossa companhia por muito tempo. Num país revoltoso, basicamente anárquico, não se respeita a dignidade do povo. Tempos difíceis, não havia emprego e o dinheiro que eu tinha não duraria mais de um mês. Sentei com mamãe e tomamos talvez a maior decisão de nossas vidas: um adeus à pátria russa. Escolhemos então, o Brasil. O motivo foi muito simples, um país que nunca se assola pelas guerras, do outro lado do mundo. Após dois meses de viagem de navio, estávamos alugando um quarto de cortiço no Rio de Janeiro com os últimos trocados que restou após vender tudo.

Bem, era um recomeço. Como todo começo, partiu do zero. Sem dinheiro, sem amigos, sem nem mesmo saber como falar português. Mas bons ventos acompanham os corajosos e todos aqueles que se atrevem a não desistir. Mamãe logo começou a costurar para os moradores do cortiço. Levantava o dinheiro para pagar o aluguel e para poder comer. Eu só sabia dançar. Tentei testes em várias academias cariocas. Mas quem acredita em uma moça de 19 anos, que supostamente treinou em uma das melhores academias de ballet russa e fugiu do seu país? Não tinha como provar, não me davam nem espaço para dançar. Afinal, mal sabia me expressar em português. Depois de tantos foras, eu desisti. Restou-me ajudar mamãe em casa, com suas costuras, tecidos e retalhos. O tempo foi passando rápido, rápido como quem trabalha, e um ano se passou.

A essa altura já estávamos estruturadas, português era fluente, tínhamos uma clientela fixa e mamãe até já havia comprado uma máquina. Minha vida teria se seguido assim, se eu não houvesse encontrado minhas sapatilhas numa caixa onde supus ter trancado meus sonhos. Calcei-as e dei um giro com minha perna esticada. Naturalmente minhas mãos seguiram o movimento suave. Eu iria tentar de novo. Fui no dia seguinte a todas as academia que haviam me recusado. Em uma delas, consegui marcar um teste. Uma senhora muito simpática chamada Elisa acreditou na minha história. Eu tinha 9 dias para montar uma coreografia. Lembro que naquele dia fui radiante para casa, mamãe mais uma vez apoiou a minha dança. Empurrei alguns móveis da minúscula sala e comecei a relembrar os movimentos que sabia fazer. Foi difícil, perdi a flexibilidade, perdi a força. Mas treinei dia e noite a fim de mostrar a bailarina que costumara ser. No dia do teste, mamãe deu-me um vestido. Branco, com as costas trançadas. Deu-me também uma fita vermelha para amarrar um coque. Peguei o ônibus das 2 da tarde, às 4 e 15 respirei fundo pela última vez antes de entrar no palco.


(Continua)

5 comentários:

Nina disse...

Que história Linda! Li tudinho e ainda queria ler mais. Tá de parabéns!!!

Bjos!

Insana disse...

"Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças"
Charles Darwin


Bjs
Insana

Julyana ツ disse...

Ahhhhh *---*
Ficou tão linda!
Tenho uma profunda paixão pela dança e pela música.
Mal posso esperar a continuação, espero que ela se dê bem afinal quem dança com o coração merece.
Achei linda a forma como mesmo depois de tanta adversidade ela tentou novamente porque, ao meu ver, no final o amor, no caso pela dança, sempre sai vencedor.




;*

Rodolpho Padovani disse...

Muito bom, uma grande lição de que não devemos desistir de nossos apesar das adversidades. Agora é torcer para que dê td certo na próxima parte.

BlackRabbit disse...

gostei...
esperando o resto...
=B