- "Não sei se morro ou se vivo, porque a vida me parou", diria Almeida Garrett. Mas como não sou capaz de fazer minhas próprias frases, eu recito o que já foi escrito. Mas eu só recito o que eu gosto e o que me convém.
- Você gosta dessa frase?
- Não desgosto. Mas ela me convém.
Foram as palavras que ouvi quando despertei. Eu lia um jornal, e talvez isso me fez pegar no sono e dormir sem perceber. A parte de política sempre me cansava, não era novidade.
Quando abri os olhos, ainda meio sonolenta, observei pelo vidro do ônibus que já era tarde. Pela escuridão do céu, devia ser onze horas da noite, mais ou menos. A bordo, havia apenas eu, um senhor que conversava com um moço nas poltronas atrás da minha e outro senhor lá no primeiro banco da esquerda, na poltrona ao lado da janela. Este dormia.
O outro senhor, porém, conversava. Fechei os olhos novamente, estava cansada demais para conseguir mantê-los abertos.
- Por que te convém, Augusto?
- Porque é assim que me sinto.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, Amadeu. É só aquela questão de fase. Estou na fase idosa. Lembro-me de quando era adolescente. Eu ficava tão irritado quando tinha que ajudar minha mãe com os serviços de casa... Agora me irrito por estar velho, e não conseguir nem varrer o chão. Sinto-me um inválido.
- Senhor Augusto. Isso não é um remorso? O senhor deixou de ajudar sua mãe?
- Não, nunca. Eu me irritava, apenas. Eu era adolescente, queria sair com meus amigos e conhecer garotas. Nenhum deles ajudava em casa. Diziam que da casa, o homem só tomava conta. Quem limpava, era a mulher. Eu me envergonhava por fazer serviços domésticos.
- Já parou para pensar que poderia ser um ato de cavalheirismo?
Então as vozes se silenciaram. Eu estava gostando da conversa. Poderia até mesmo um senhor de idade ser machista? Eu adorei a pergunta de Amadeu que fez Augusto se calar.
- Minha mãe era doente. Eu a ajudava, porque não conseguia vê-la fazendo tudo sozinha. Eu me irritava, mas em silêncio. Eu só pedia a ela, que não contasse aquilo aos meus amigos. Então, uma vez ela disse “Nossos segredos eu vou guardar em algum lugar. Onde ninguém, que por mais que mexa e remexa, não possa encontrar.”
De fato, ela guardou mesmo aquele segredo. Meus amigos todos faleceram sem nunca saber dos meus serviços domésticos em casa.
- Mas então se ela era doente, não devia se envergonhar por ajudá-la. Isso seria um exemplo para os seus amigos.
- Eu era um adolescente cheio de hormônios, preocupado com a minha boa reputação entre todos os outros adolescentes. Não pensava nisso, não enxergava isso naquela época. Não me culpo. Era apenas uma fase também.
- Verdade... O senhor entende bem as fases, não é?
- Agora entendo. Passei por todas, estou na última. E esta é a última que me resta entender. Entender porque me sinto um inválido. E porque essa invalidez me sobe a cabeça toda vez que me lembro da minha adolescência.
- Deve ser porque antes o senhor era mais jovem. O senhor não tem mais 16 anos, mas nada te impede de se divertir. Diversão não tem idade. Não devia se sentir um inválido. Há muitos adolescentes hoje em dia, que mesmo sem saber, estão invalidados. Veja o senhor, dentro de um ônibus, indo viajar a turismo.
- Pode ser. Mas turismo virou rotina para mim. E rotinas não me divertem. Aliás, viajar não me torna menos inválido. Quando eu era adolescente, meus pais eram divorciados. Eu morava sozinho com a minha mãe. Ela tinha câncer. Então eu cuidava dela. Todo dia de manhã, eu me levantava, ia à cozinha fazer o leite dela, e levava para ela na cama. Era uma rotina, ela adorava isso e eu já estava acostumado. Mas no dia 20 de agosto, acordei, fui fazer o leite. Mas quando fui levar a xícara no quarto dela, eu a chamava e chamava, mas ela não abria os olhos. Foi quando coloquei a mão no peito dela e não senti seu coração bater. Aquilo foi fatal para mim. Desde então, passei a odiar rotinas.
- Nossa, eu sinto muito. - Disse Amadeu num tom de lástima. - Mas se não gosta de rotinas, por que viaja constantemente?
- Porque eu procuro um lugar onde eu possa me sentir bem. Mas conforme os dias passam, eu acabo me enjoando do lugar e migro para outro. Estou começando a crer que não me sinto bem mais em lugar algum. Por isso não me fixo em lugar nenhum.
- Que estranho.
- Sim. Mas eu acho que entendo. Estou só no mundo, não sei onde se encontra meu pai, perdi meus amigos, minha mãe faleceu. Quando eu viajo, é nos transportes que eu me sinto vivo. Eu gosto de ter alguém pra conversar. Falar é um ato contrário à invalidez.
- Acho que é sim.
- Sinto falta da minha mãe. Todo dia me pergunto quanto tempo levarei para encontrá-la novamente. Eu só sei que cada minuto que se passa, nasce um minuto a menos. Mas eu não me preocupo. Eu sei que uma hora ou outra irei encontrá-la. Só estou ansioso.
O ônibus parou em uma rodoviária, e o senhor se levantou, deixando de pé sua bengala, e pegando sua mala que estava aos seus pés.
- Eu desço aqui, moço. Boa sorte nos seus estudos.
- Obrigada, Augusto. Bons turismos e muitas conversas para o senhor.
Então ele desceu do ônibus, e após entrarem algumas pessoas nele, ele foi saindo de ré da rodoviária. Eu já havia aberto os olhos, e podia ver uma chuva fina começar a cair lá fora. Talvez fossem as lágrimas da mãe de Augusto. Não de tristeza, mas de honra por saber que apesar de tudo, ele se negava a deixá-la só, fosse no café da manhã ou no serviço doméstico.
O ônibus começava a seguir seu trajeto, num desvio que dava a uma estrada e eu olhei as estrelas que cintilavam no céu. Augusto poderia ter certeza de que não era um inválido. Eu via as estrelas no céu, tão pequenas... Mas faziam toda diferença no céu escuro.
E Augusto com certeza fez a diferença na adolescência e na vida da falecida mãe dele.
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Invalidez
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6 comentários:
Adoreei, mto legal!
to seguindo!
http://blog-adversativo.blogspot.com/
Só é invalido aqueles que querem.
A mãe daquele menino que agora é idoso vangloria por ele. Nunca foi um invalido.
Um belissímo conto e uma maravilhosa estréia.
Muito sucesso para a Letícia aqui assim como para a Nini no que ela estiver se dedicando agora ;)
;*
Nossa! Que lindo! Até depois de morta, o Augusto ainda se importava com a mãe dele.
Texto forte.
bjs
Insana
nossa...
ótimo conto...
bem marcante e reflexivo...
gostei...
=D
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