domingo, 19 de maio de 2013

Ananda



Fora mais um dia como outro qualquer. Ananda deitada em sua cama ouvia os gritos que vinham da cozinha como estrondo de bombas explodindo sobre o solo. E por que não seria? Era assim que ela se sentia, como se o mundo estivesse caindo sobre sua cabeça, mais uma vez. E sempre era nela que caía. Tudo e mais um pouco. Mesmo com a porta trancada e com o travesseiro sobre a cabeça ela conseguia ouvir, e ouvir bem a cena mais que rotineira. Seu pai chegava em estupor de bêbado, de qualquer lugar, e descontava em sua mãe. Ananda já não conseguia mais ver sua mãe ser espancada todos os dias. Naquele seria diferente, ela disse a si mesma. Depois de não mais aguentar ouvir os gritos, que poderiam ser escutados a quilômetros de distância, Ananda resolveu agir. Levantou de sua cama com um sentimento que jamais havia experimentado. Secando suas lágrimas com as mãos ela já decidira evitar ver sua mãe ser quase morta mais uma vez por causa da brutalidade de seu pai. 
Andando pelo corredor e sentindo os gritos se infiltrarem ainda mais pelos seus ouvidos ela sentia que aquele sentimento, jamais experimentado, só fazia aumentar. Ao chegar a porta da cozinha ela observava seu pai descontar toda raiva dele em sua mãe. Parecia um bicho agindo por instinto. Parecia não se dar conta do que estava fazendo. Simplesmente fazia, como se fosse algo natural, e exibia certo sorriso malicioso no rosto. Como se estivesse sentindo satisfação pelo desempenho. Ver aquela imagem só intensificava aquela sensação súbita que consumia cada vez mais Ananda. Ela se aproximava cada vez mais, e seu pai distraído com seu serviço e ouvindo apenas seus próprios gritos, não percebera quando ela adentrou a cozinha e, já cansada de presenciar aquela cena de horror, avançou em suas costas para impedi-lo de continuar com o espancamento. Travando uma luta desigual com seu pai, Ananda acabou sendo arremessada contra a parede batendo a cabeça. Por sorte o impacto não a desacordou e ela conseguiu ter reflexo para se defender de um chute que seu pai lhe desferiu de imediato a sua queda. Ao segurar a perna de seu pai ela conseguiu desequilibrá-lo e lançá-lo para trás. Sua mãe já quase sem forças pra se levantar se transformou em algo irreconhecível e em um acesso de fúria pegou uma faca na gaveta e foi em direção ao marido. Na minha filha não. Por azar da mãe de Ananda seu marido já havia percebido a intenção de sua esposa e conseguiu se defender e tirar a faca de sua mão. Arremessando-a pra longe ele não pensou duas vezes em continuar a bater em sua esposa. “Agora vou te bater até você não levantar mais”. Com mais brutalidade, do que quando havia começado, o pai de Ananda derrubou sua esposa no chão e começou a chutá-la. Ananda em outra investida contra seu pai o segurou pelo braço e desferiu uma mordida com toda a força que conseguira. Ele urrou de dor. Sua mãe com o resto de forças levantou-se e o segurou pelo outro braço, o mordendo também. No entanto, ele era forte, não baixou a guarda nenhum instante com as mordidas. Assim como havia um sentimento em Ananda que só aumentava, em seu pai havia uma falta de lucidez que não cessava. Em um golpe final ele se voltou para a esposa e segurando sua cabeça deu três batidas fortes com ela na parede. Sua mãe desferiu um último grito e a casa se afundou em um profundo e cortante silêncio. Ao soltar o corpo de sua mulher no chão o pai de Ananda esfregou seu rosto com as mãos e só então percebera que elas estavam cobertas de sangue. Ele levou um choque e ficou intacto em pé diante do corpo de sua mulher já sem vida. Ananda, mesmo com o choque, e sem assimilar bem o que havia acontecido, se jogou em cima do corpo de sua mãe gritando numa tentativa de reanimá-la. Quando se deu conta de que sua mãe não levantaria mais e que seu pai havia cumprido a promessa, foi em direção a ele e começou a esbofeteá-lo dessa vez sem receber represália alguma. Seu pai se desvencilhando cambaleou até o quarto e se jogou em cima da cama, enquanto Ananda ficou ali, chorando abraçada ao corpo da mãe. Quando já não tinha mais força e nem mais lágrimas pra chorar Ananda se levantou e pegou a faca que havia sido arremessada pelo seu pai no chão e direcionou-se até o quarto. 
Seu pai estava tão bêbado que falava sozinho em resmungos. Ananda já estava totalmente dominada por aquele sentimento que a consumia dos fios de cabelos aos dedos dos pés. Ela hesitou, pensou, mas não conseguiu resistir a sede de vingança e ódio. Soltou um grito de libertação e correu em direção ao pai, deitado na cama, que não teve oportunidade de se defender. Ao cravar a faca na barriga de seu pai, que havia despertado pelo grito, Ananda olhou bem fundo em seus olhos. Quando seu pai tentou se defender ela desferiu mais facadas até que seu pai ficou largado em cima da cama agonizando. Ananda não viu o pai morrer. Saiu correndo sem rumo com uma mochila que arrumou as pressas. Correu com uma falsa sensação de liberdade, mas tinha em sua consciência que, dali em diante, estava sozinha no mundo. E estar só pesava muito em seu coração, pois ela sabia que estar só é muito diferente de estar livre. Tinha em sua consciência também que Ananda ficara morta naquela casa também e que a partir dali, além de uma vida nova, seria uma pessoa nova.

Um comentário:

renatocinema disse...

Estava com saudades de passar por esse site e me deliciar com belos contos........

saudades......