Fora
mais um dia como outro qualquer. Ananda deitada em sua cama ouvia os
gritos que vinham da cozinha como estrondo de bombas explodindo sobre
o solo. E por que não seria? Era assim que ela se sentia, como se o
mundo estivesse caindo sobre sua cabeça, mais uma vez. E sempre era
nela que caía. Tudo e mais um pouco. Mesmo com a porta trancada e
com o travesseiro sobre a cabeça ela conseguia ouvir, e ouvir bem a
cena mais que rotineira. Seu pai chegava em estupor de bêbado, de
qualquer lugar, e descontava em sua mãe. Ananda já não conseguia
mais ver sua mãe ser espancada todos os dias. Naquele seria
diferente, ela disse a si mesma. Depois de não mais aguentar ouvir
os gritos, que poderiam ser escutados a quilômetros de distância,
Ananda resolveu agir. Levantou de sua cama com um sentimento que
jamais havia experimentado. Secando suas lágrimas com as mãos ela
já decidira evitar ver sua mãe ser quase morta mais uma vez por
causa da brutalidade de seu pai.
Andando pelo corredor e sentindo os
gritos se infiltrarem ainda mais pelos seus ouvidos ela sentia que
aquele sentimento, jamais experimentado, só fazia aumentar. Ao
chegar a porta da cozinha ela observava seu pai descontar toda raiva
dele em sua mãe. Parecia um bicho agindo por instinto. Parecia não
se dar conta do que estava fazendo. Simplesmente fazia, como se fosse
algo natural, e exibia certo sorriso malicioso no rosto. Como se
estivesse sentindo satisfação pelo desempenho. Ver aquela imagem só
intensificava aquela sensação súbita que consumia cada vez mais
Ananda. Ela se aproximava cada vez mais, e seu pai distraído com seu
serviço e ouvindo apenas seus próprios gritos, não percebera
quando ela adentrou a cozinha e, já cansada de presenciar aquela
cena de horror, avançou em suas costas para impedi-lo de continuar
com o espancamento. Travando uma luta desigual com seu pai, Ananda
acabou sendo arremessada contra a parede batendo a cabeça. Por sorte
o impacto não a desacordou e ela conseguiu ter reflexo para se
defender de um chute que seu pai lhe desferiu de imediato a sua
queda. Ao segurar a perna de seu pai ela conseguiu desequilibrá-lo e
lançá-lo para trás. Sua mãe já quase sem forças pra se levantar
se transformou em algo irreconhecível e em um acesso de fúria pegou
uma faca na gaveta e foi em direção ao marido. Na minha filha não.
Por azar da mãe de Ananda seu marido já havia percebido a intenção
de sua esposa e conseguiu se defender e tirar a faca de sua mão.
Arremessando-a pra longe ele não pensou duas vezes em continuar a
bater em sua esposa. “Agora vou te bater até você não levantar
mais”. Com mais brutalidade, do que quando havia começado, o pai
de Ananda derrubou sua esposa no chão e começou a chutá-la. Ananda
em outra investida contra seu pai o segurou pelo braço e desferiu
uma mordida com toda a força que conseguira. Ele urrou de dor. Sua
mãe com o resto de forças levantou-se e o segurou pelo outro braço,
o mordendo também. No entanto, ele era forte, não baixou a guarda
nenhum instante com as mordidas. Assim como havia um sentimento em
Ananda que só aumentava, em seu pai havia uma falta de lucidez que
não cessava. Em um golpe final ele se voltou para a esposa e
segurando sua cabeça deu três batidas fortes com ela na parede. Sua
mãe desferiu um último grito e a casa se afundou em um profundo e
cortante silêncio. Ao soltar o corpo de sua mulher no chão o pai de
Ananda esfregou seu rosto com as mãos e só então percebera que
elas estavam cobertas de sangue. Ele levou um choque e ficou intacto
em pé diante do corpo de sua mulher já sem vida. Ananda, mesmo com
o choque, e sem assimilar bem o que havia acontecido, se jogou em
cima do corpo de sua mãe gritando numa tentativa de reanimá-la.
Quando se deu conta de que sua mãe não levantaria mais e que seu
pai havia cumprido a promessa, foi em direção a ele e começou a
esbofeteá-lo dessa vez sem receber represália alguma. Seu pai se
desvencilhando cambaleou até o quarto e se jogou em cima da cama,
enquanto Ananda ficou ali, chorando abraçada ao corpo da mãe.
Quando já não tinha mais força e nem mais lágrimas pra chorar
Ananda se levantou e pegou a faca que havia sido arremessada pelo seu
pai no chão e direcionou-se até o quarto.
Seu
pai estava tão bêbado que falava sozinho em resmungos. Ananda já
estava totalmente dominada por aquele sentimento que a consumia dos
fios de cabelos aos dedos dos pés. Ela hesitou, pensou, mas não
conseguiu resistir a sede de vingança e ódio. Soltou um grito de
libertação e correu em direção ao pai, deitado na cama, que não
teve oportunidade de se defender. Ao cravar a faca na barriga de seu
pai, que havia despertado pelo grito, Ananda olhou bem fundo em seus
olhos. Quando seu pai tentou se defender ela desferiu mais facadas
até que seu pai ficou largado em cima da cama agonizando. Ananda não
viu o pai morrer. Saiu correndo sem rumo com uma mochila que arrumou
as pressas. Correu com uma falsa sensação de liberdade, mas tinha
em sua consciência que, dali em diante, estava sozinha no mundo. E
estar só pesava muito em seu coração, pois ela sabia que estar só
é muito diferente de estar livre. Tinha em sua consciência também
que Ananda ficara morta naquela casa também e que a partir dali,
além de uma vida nova, seria uma pessoa nova.
Um comentário:
Estava com saudades de passar por esse site e me deliciar com belos contos........
saudades......
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