quarta-feira, 11 de julho de 2012

Valiosa


Mantendo-se cabisbaixa e apagada, Maria Helena fitou as cortinas do grande teatro “Ganger” se fecharem.
   Com a união dos panos e o recesso de poucos aplausos abafados, suspirou aliviada e dirigiu-se ao camarim. Durante o trajeto ignorou os suplicantes chamados dos colegas de trabalho, dizendo em alto e bom tom:
_ Não atenderei ninguém!
   A equipe olhou-se entristecida, respeitando a decisão.
   Há poucos dias, ela estreara um monólogo de sua autoria, intitulado “Fantasia”. A platéia o adorara, aplaudindo-a de pé. Contudo, a crítica especializada destruíra-o, menosprezando desde o cenário até suas entonações. Como resultado, pouco a pouco, o teatro esvaziou-se e a temporada teria de ser cancelada. Hoje, o último espetáculo fora apresentado. A atriz sentia-se destruída.
   Trancando-se à chave, assentou-se diante do espelho e observou a maquiagem escorrer juntamente com as lágrimas que banhavam o rosto jovem e belo. Como podiam ter sido tão cruéis? O quê ganhavam com isso? Prestígio, prazer, atenção? Essas perguntas fervilhavam em sua mente, aumentado sua indignação.
   De um momento ao outro, ouviu algumas batidas na porta e percebeu que alguém movimentava a maçaneta, tentando abri-la. “Devem estar preocupados,” pensou. Um pouco a contragosto, levantou-se e destrancou-a.
_ Perdão. Sei que não deseja receber ninguém, entretanto, Marisa Bittencourt está aí e insiste em falar com você – anunciou Renata, uma funcionária, estalando os dedos nervosamente.
   Maria Helena assustou-se. Marisa era uma das atrizes brasileiras mais respeitadas de todos os tempos. Comumente, protagonizava novelas, peças teatrais, filmes nacionais e, até mesmo, internacionais.
   Atordoada, limpou as lágrimas e respondeu:
_ Mande-a entrar, por favor.
   Renata obedeceu-a, e em menos de dois minutos, Marisa entrou no cômodo, dizendo:
_ Boa noite, Helena. Fico feliz por receber-me.
_ Boa noite, Marisa. Eu é que me alegro – respondeu timidamente.
_ Infelizmente, só pude assistir ao espetáculo hoje, em seu último dia. Venho dizer-lhe que estou em total desacordo com os críticos. Você é maravilhosa! – parabenizou Marisa, batendo palmas animadas.
   Vendo a sinceridade em seu rosto, Maria Helena, fragilizada, não se conteve. Deu vazão aos dissabores, chorando copiosamente. Marisa correu ao seu encontro e limpou suas lágrimas.
_ Minha querida, você é uma estrela! Pare de perder tempo com lamentações e rancores. Essa temporada terminou, mas outras virão – confortou-a.
_ Acho que ninguém quererá assistir-me novamente.
_ Não fale isso. Assim como eu, o público acredita em você. Fantasia, apesar de elegante e bem escrita, é uma peça de apelo popular. A crítica desdenhou e muitas pessoas acreditaram. Entretanto, você ainda possui admiradores e fãs. Dê o seu melhor a eles.
   _ Não entendo como podem ter sido tão atrozes comigo – retrucou Helena, parecendo não escutá-la. – Passei meses escrevendo, ensaiando, produzindo cada detalhe do espetáculo. No fim, ganho isto: o fracasso. A língua ferina de alguns destruiu cada gota de suor que investi.
   Marisa olhou-a com olhos ternos, lembrando-se das muitas vezes que passara por isso. Os críticos pensavam que os artistas, de forma geral, possuíam nervos de aço e corações de pedra. Julgavam-nos sem dó ou piedade, desmoralizando-os diante do público.
_ Entendo perfeitamente sua indignação, Maria Helena. Há muitos anos atrás, minha mãe adoeceu gravemente e, sem fundos para suprir as despesas, pois naquele tempo éramos muitos pobres, estreei um lindo musical planejando juntar uma boa quantia para pagar-lhe o tratamento. Contudo, os jornais destruíram a peça e, em menos de três semanas, a temporada foi cancelada. Poucos dias depois, minha mãe faleceu e entrei em grave estado depressivo.
_ Meu Deus! – exclamou Maria Helena, chocada. – Jamais imaginei que uma pessoa como você houvesse passado por algo assim.
_ Ninguém imagina. O publico se esquece que sou uma mulher de carne e osso e que, mesmo com todo o glamour da profissão, tenho problemas gigantes, como qualquer ser humano. Enfim, a crítica e o público estão lá para se entreterem e opinarem. O sistema é assim e não mudará. Contudo, peço a Deus que eles façam o trabalho deles de forma humana.
_ Você tem razão. Eles poderiam criticar de forma amena, trazendo-nos sugestões de melhoria. Seria muito mais proveitoso.
_ Com certeza – concluiu Marisa. – De qualquer maneira tenho uma proposta a lhe fazer.
_ Pois, faça – respondeu Maria Helena. Seus olhos brilharam intrigados.
_ João Bianco, um grande amigo meu, diretor do teatro “Felix Albuquerque”, amou a peça e quer que eu faça algumas pequenas adaptações e a dirija, estreando-a novamente na próxima temporada. Se você topar, será um grande prazer.
   Maria Helena assustou-se. Jamais imaginou que a grande dama do teatro nacional pudesse propor-lhe algo do gênero.
_ Será que conseguiremos público? – perguntou insegura.
_ Teremos de usar toda a nossa influência. A princípio não será fácil, contudo, acredito que sairemos vitoriosas – respondeu, exalando um inabalável otimismo.
_ Então, eu topo! – aceitou Maria Helena. – Não tenho palavras para agradecê-la.
_ Agradeça-me dando o melhor de si.
   As atrizes abraçaram-se comovidas, trocaram contatos e despediram-se. Marisa sentia-se com a alma lavada. Detestava manter-se passiva diante de situações que julgava injustas. Maria Helena, por sua vez, assistia, novamente, à maquiagem se borrar com as lágrimas. Só que agora, um lindo sorriso estampava-lhe o rosto. Era a alegria de sentir-se o que todos os seres humanos são: valiosos.

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