terça-feira, 26 de junho de 2012

Corpo e Alma



Eu estava sentada à beira de um rio. As suas águas frescas corriam sobre meus pés, e, os raios de sol, apesar de aquecerem-me, não incidiam sobre mim, afinal, encontrava-me sob a sombra de uma árvore frondosa, comuns naquela região. Apesar da vista agradabilíssima, um sentimento pungente de solidão apoderara-se de mim, deixando-me desconsolada. O único fato que me acalmava era a consciência de que, cedo ou tarde, aquele que aqui me abandonara, voltaria para me buscar. 
   Chamava-me “Alma” e possuía as feições do meu companheiro, o “Corpo”. Éramos altos, esguios e extremamente belos. Tínhamos cabelos negros, lisos e grossos. Nossos rostos eram finos, assim como nossos narizes. Quando felizes, exibíamos um par de olhos puros e brilhantes em união com um sorriso largo e admirado.
   Há pouco mais de dois anos, ele, o Corpo, me deixara diante desta paisagem. Foi aqui que Murilo, o nome dado ao ser formado pela minha união com o Corpo, conhecera Denise; uma morena baixa e corpulenta, com coxas torneadas e seios fartos. Embora não fosse tão bela, possuía três características fascinantes: inteligência, liberdade e uma inocência quase infantil. Além destas, trazia, também, uma carga emocional violenta. Passara por poucas e boas durante a infância, e, todos os acontecimentos lhe haviam deixado um pouco traumatizada.
   Assistindo-a tão frágil e delicada, Murilo esquecera-se de mim, esquecendo-se de si, e, dedicara-se em tornar Denise à mulher mais feliz sobre a face da terra. Hoje, ela era ditosa e plena, mas, infelizmente, não o amava mais como homem. Ele, por sua vez, encontrava-se extremamente melancólico e humilhado, e, sem opções, veio procurar-me em uma tarde de Junho, após deixá-la em um ponto de ônibus, prometendo não procurá-la mais.
   Ao perceber sua chegada, anunciada por passos lentos e incertos, retirei os pés da água e abracei os joelhos. Sentia-me extremamente insegura. O brilho que sempre emanava sumira e uma sensação de fraqueza estendia-se por todo o meu ser. Estes eram os principais sintomas de uma alma abandonada. Nós havíamos sido criadas para o afago e o mimo. Não sabíamos e não tínhamos meios de cuidar de nós mesmas.
   Vendo-me, o Corpo fez uma careta indecifrável e assentou-se ao meu lado. Fixando a margem oposta, remexeu-se na grama, ajeitando-se, e saudou-me:
_ Boa tarde!
_ Boa tarde! – respondi, tentando esconder a minha insegurança.
   A voz dele saíra desdenhosa e fria, atingindo-me em cheio na boca do estômago. Definitivamente, ele não gostava de mim.
_ Como você está?
_ Exatamente como você enxerga: péssima! – contestei, rindo ironicamente.
   Ele dirigiu os olhos em minha direção e fitou-me. Eu ruborizei levemente e não o encarei.
_ Você está com uma aparência terrível. Bem se vê que não é feliz. Também não sou – confessou. Uma lágrima amarga escapou de nossos olhos. Ele chorava pela falta de Denise. Eu chorava pela falta dele.
_ Tolo! – urrei, irritada. – Claro que não é feliz. Jamais será enquanto me tratar como lixo.
_ Não gosto de você!
   “Novidade,” pensei. “Um dia ainda entenderei porque tantos seres humanos abandonam suas almas para cuidarem de outras. Não que seja errado ajudar àqueles que cruzam o nosso caminho, muito pelo contrário, é um ato de extrema nobreza, mas jamais podem fazê-lo, abandonando a sua essência”.
_ Você não tem opção, Corpo. Ou ama-me, ou será eternamente infeliz – revelei, tocando-lhe a face. Ele estremeceu ao meu toque. Diante de seu silêncio, prossegui: Muitas pessoas odeiam-se, e, confessar tal sentimento já é um ótimo começo para mudá-lo.
_ Jura?
_ Juro! Posso saber o motivo do seu ódio por mim?
_ Não chega a ser ódio o que sinto por você. Na verdade, acho-lhe sem graça, sem sal.
_ Então, enquanto pensar assim, e, deixar-me aqui, Murilo será exatamente sem graça e sem sal.
   O Corpo não respondeu de imediato. Meditou por dois ou três minutos e pegou-me em seus braços, dizendo:
_ Perdoa-me? Preciso amar-me, amando-a!
_ Claro – respondi, sorrindo. – Tenho certeza que conseguirá. Se você foi capaz de amar Denise com tanto afinco e torná-la uma das mulheres mais felizes que já viu, é óbvio que conseguirá fazer o mesmo comigo.
   Dito isto, ele apertou-me ainda mais em seus braços e beijou-me a boca. Fundimo-nos.

*
*   *

   Murilo ajoelhou-se à beira do rio, sentindo a terra fofa sob os joelhos. Enchendo as mãos com água fresca, lavou o rosto. Os olhos estavam inchados por tanto chorar de emoção durante a tarde. Agora, os últimos raios de sol diziam adeus na linha do horizonte e a escuridão da noite cobria, pouco a pouco, toda a região. O menino levantou-se, exibindo um sorriso faceiro. O brilho de sua alma começava a brotar e vazar por seus olhos. Não havia ninguém ao redor. Ele não se importava mais. A felicidade de ter-se o bastava.


* Inspirado no conto “O Segundo Travesseiro” de Sol Schiavon.  

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