segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Liberdade chuvosa

A chuva que molhava o seu rosto naquele dia nunca pareceu tão libertadora. Ela estava sentada do lado de fora de uma casa praieira, o vento forte balançava seu cabelo pesado pela água gélida que já havia encharcado-a, mas ela não se importava, mantinha uma expressão serena, os olhos fechados, e uma paz indescritível. Aquilo sempre a lembrava da noite de sua libertação.
...
O café estava derramando no fogão, um homem bêbado entrou na cozinha e caiu antes de alcançar o interruptor da lâmpada, a menina o espreitava por detrás do sofá da sala. Ela abraçava os joelhos e balançava o corpo para frente e para trás enquanto tentava controlar os soluços. Em uma das mãos ela apertava uma fotografia antiga, o rosto da mulher estava desfigurado, manchado pelas lágrimas da menina em prantos. Na outra ela segurava o aparelho celular, com olhos culpados e temerosos.
O homem se levantou como conseguiu, desligou o fogão e queimou-se com o café, bradou voltando-se para a menina que escondia o rosto rapidamente atrás do estofado sujo.
- Você é igual a sua mãe! Igual! – berrou cambaleando até a sala.
- Você está se escondendo de mim? Quer fugir também? Você é igual a ela! – tropeçou no tapete enquanto ia em direção ao sofá, a menina escondeu o celular embaixo do estofado, e a fotografia dentro do vestido surrado.
- O que você está escondendo aí sua imunda? – disse segurando a menina pelos braços. Ela se remexia, e o encarava com olhos de desespero.
Ia começar tudo de novo, ela já não aguentava aquelas surras, já não suportava ter que mentir para os amigos na escola, já não sabia como esconder aqueles hematomas por todo o seu corpo, e o pior de tudo é que por dentro doía muito mais.
Os cabelos claros foram puxados, ela foi jogada contra a parede. Suas lágrimas misturaram-se com o sangue que escorria do lábio recém partido. O homem se desequilibrou e caiu em cima da mesa de centro, alguém bateu na porta.
- Não tem ninguém aqui! – ele berrou. A menina estava em um canto da sala, chorando, limpando o sangue no vestido já tão cansado daquelas manchas.
- É claro que não! – foi o que se ouviu quando a porta foi derrubada. A menina estava assustada, mas sabia do que se tratava. O homem bêbado tentava se levantar, ainda tentou acertar um soco no policial, mas esse o colocou com o rosto no assoalho.
- Eu não sou uma garotinha, seu cretino. – disse o algemando. A menina assistia a tudo sem ao menos piscar.
- Você é muito inteligente, filha. Venha conosco agora, sim? – disse outro policial enquanto a  segurava com cuidado.
- Sua imunda! – o homem berrou enquanto era levado. 

A menina foi para um orfanato, era uma noite chuvosa, mas a chuva jamais a tinha a agradado tanto. Ela passou uma semana naquele lugar, até que encontraram uma tia distante que a criou como se fosse uma filha.
Hoje, depois de dez anos, as lembranças ainda permanecem vividas, mas a tranquilidade por essas terem feito parte de um passado distante a acompanha. As noites de chuva sempre a faz lembrar da primeira noite que se sentiu livre de verdade, e agora, ali do lado de fora daquela casa ela absorve a chuva com toda a alma exposta.

- O jantar está pronto, querida! – disse a senhora que a esperava na porta com uma toalha nas mãos. Ela já conhecia aquele ritual, sabia que a chuva representava a alforria da menina que um dia fora escrava de um pai que nunca mereceu esse título. Mas no fim as coisas se ajeitam, é o que sempre disse para si mesma; é o que sempre diz para a menina de cabelos claros, que sorri enquanto a abraça ainda molhada, a tia a aperta contra si, e a menina percebe que ali foi o lugar onde sempre quis estar. 

Um comentário:

renatocinema disse...

Adorei a conclusão: escrava de um pai que nunca mereceu esse título.