sábado, 23 de julho de 2011

Por aquilo que é errado


Cecília se encolheu no canto da parede abraçando os joelhos enquanto os olhos demonstravam tristeza e medo à medida que o via tirar a cinta de couro dos passadores da calça jeans.
- Eu não te criei durante dezesseis anos para que você aparecesse grávida em casa com uma idade dessas! – Disse arrogantemente já com a cinta na mão, unindo as extremidades da mesma.
- Mas pai, me deixa terminar de dizer! – Suplicou a jovem, tropeçando as palavras nas lágrimas.
- NÃO! – Gritou no mesmo instante em que descia a cinta com toda sua força nas pernas nuas da filha. – Não admito que filha minha apareça grávida em casa, muito menos de vagabundo.
Cecília gritava em meio ao choro desesperado a cada batida atordoante da cinta, que parecia cortar-lhe a pele. Fazia um escândalo sentido, incompreendido. Desistiu de abrir a boca para dizer algo quando percebeu que toda vez que fazia isso, a sova era mais forte e dolorida. O pai só gritava, humilhando-a. E para a menina, no fundo era mais dolorido as palavras que ouvia do que a dor física provocada. Ela tinha algo a mais para dizer. E o fato de não ter permissão a fala, a corroía tão profundamente, a ponto de querer morrer de tanto apanhar só para que o pai sentisse intenso remorso. Mas era cedo para morrer. E havia outro meio de deixá-lo com a consciência pesada: falando-lhe o final. Não que ela fosse de desejar mal, mas sempre achou que pessoas que julgam ao primeiro comentário mereciam algum peso na consciência. Além disso, achou que já havia apanhado demais. Prendeu o choro por dois segundos, e, ainda que levando cintadas – já mais leves pelo cansaço do pai de tanto bater –, respirou fundo e buscou equilibrar o corpo para manter-se de pé. Conseguiu. E cambaleando um pouco, conseguiu desviar-se do pai e correr. Saindo de seu quarto e indo para o corredor, rapidamente encontrou um banheiro, onde se trancou imediatamente. Encostou-se à porta, ignorando o pai que esmurrava a mesma, pedindo que a abrisse, e deixou que seu corpo escorregasse por ela até que ficasse agachada no chão. Levou as duas mãos ao rosto, tornou a chorar. Certo que era seu pai, mas ela detestava a mania dele de não querer ouvir. Logo ele, que se dizia tão certo. Passou as costas das mãos embaixo dos olhos e despiu-se com um pouco de dificuldade. Sua pele ardia. Ao ficar nua, os hematomas se revelaram. Então ela se olhou, indignada, mas não surpresa.
Adentrou a banheira, que já fazia se encher. Com os braços ao lado do corpo, passava as mãos na superfície da água, brincando, como se a estivesse acariciando. O barulho que a água fazia a distraía e também a relaxava um pouco. Os joelhos apontados para cima deixavam expostos fora da água algumas manchas roxas, já de sovas passadas. Porque o pai dela era daqueles autoritários, que batiam por qualquer coisa que considerassem errada.
Num repente, o pai deu um murro estrondoso na porta, o que interrompeu a menina de ignorá-lo. Agora ela já podia falar, e apenas se ele arrombasse a porta poderia puni-la por isso.
- Dá pra parar de bater assim na porta? – Falou com firmeza. E aumentando ao máximo o tom da voz, continuou, também em tom de lamento – Eu fui estuprada, pai!
Calaram-se as batidas na porta. Tudo ficou em silêncio. Só o que fez um pequeno barulho foi uma lágrima de Cecília que havia escorrido-lhe da face e se encontrado com a água da banheira.
Ela fora estuprada, torturada emocionalmente para que não contasse o ocorrido a alguém – o que era um tanto quanto desnecessário, já que não era algo agradável de sair compartilhando –, e, após descobrir a gravidez, fora espancada pelo pai ao ir deixá-lo ciente de um terço do que lhe havia ocorrido.
Ah, se ele soubesse o quanto ele está errado, passaria um dia todo surrando a si mesmo, pensava Cecília, envolta de raiva, desespero e angústia. Porque é um absurdo imensurável não ouvir o que o outro tem a dizer, quando este se propõe a contar. E julgar antes do fim, "apenas" intensifica esse equívoco que, a propósito, nem deveria existir.

# Pauta para Bloínquês



3 comentários:

renatocinema disse...

Tenso, duro, cruel....e verdadeiro.


Quantos não batem primeiro para perguntar depois?


Tocante

Any disse...

o texto ficou incrível. me assustei com o final. e tenho certeza, que quando alguém vier falar algo comigo, e eu não gostar do começo, eu irei esperar a pessoa terminar antes de sair.

Any disse...

selinho pra você no meu blog ;D
beijos
http://saber-sonhar.blogspot.com