"Um dia um tufão moribundo abateu-o [cacto] pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de energia:
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de energia:
_Era belo, áspero, intratável."
MANUEL BANDEIRA
O rapaz vinha de longe. Vinha pra mudar, pra se mudar. Não havia deixado exatamente essas palavras claras sobre sua mudança pra cidade. Vinte e poucos anos e nunca pisara no asfalto. Era como uma afronta. Tratou de pensar nisso melhor, pensar como seria sua fuga. Preparou tudo melindrosamente. Levava consigo apenas uma mochila velha. Agiu como um menino e como menino chegou à cidade.
Caroneiro de carrocerias de caminhões de boias-frias, o único trabalho que conhecia de perto era o das mãos na terra, na madeira ou em qualquer outra coisa que se achasse no mato.
Aproximava-se da cidade quando o sol começava a se pôr. Já começara a surpresa ao ver imensas torres das quais saía fumaça escura, acinzentada nos distritos da cidade grande. A ideia do que era produzido ali tirava sorrisos do rosto do rapaz. Nem se incomodou com o mau cheiro. Seu organismo não acostumado com a fumaça poluidora começou a se manifestar.
E foi assim que chegou à cidade grande. Tossindo, com a garganta coçando e com os olhos vermelhos - mas brilhantes, brilhantes de emoção por contemplar o que não conhecia. Seus olhos eram como os de um recém-nascido. Olhava pra tudo, admirava-se com tudo. A começar pela multidão de gente; nunca vira tantas pessoas juntas em um único lugar. Depois de desistir de olhar pra cada rosto indiferente da multidão, ergueu o pescoço, admirando a estrutura do galpão rodoviário. Até a cor dos tijolos meio laranjados lhe chamava a atenção. Não que nunca tivesse visto um daqueles antes; nunca os vira usados naquele tipo de construção que lhe parecia majestosa. Chegou a acreditar que os caibros de aço eram incríveis demais só por sustentarem o teto do galpão.
Saiu da rodoviária. Achou interessante caminhar um pouco nas calçadas. De onde vinha, o portão da casa era uma cerca de arame farpado ou madeira. O chão era o mato ou apenas batido de terra. Cerâmica era um luxo de poucos. Mas ali, na cidade, tudo parecia ser aproveitado sem ser poupado. A começar pelo asfalto. Não encontrara uma única rua de terra vermelha. Só asfalto negro, como um mar escuro numa noite de tempestade sobre o qual se podia andar. E realmente procurou uma que não tivesse asfalto. Embrenhou-se por todas as ruas. Virava à direita, subia, descia, esquerda, uma rua paralela, subia mais uma, virava à esquerda, descia a direita - nenhuma. O jovem rapaz acreditou estar dentro de um labirinto. Perdera a única referência que tinha: a rodoviária. Andara mais de meia hora brincando com as curvas, com as vias de mão única e dupla, sem pensar direito por onde passava. Olhava no rosto de todos que passavam; era como magia: cada rosto apresentava uma peculiaridade, uma novidade aos olhos do rapaz, mas reparando no todo, todos eram iguais. Eram uma espécie sem diferença. Parou de dar tanta atenção aos que passavam e focou-se. Desafiava cada curva. Perdeu-se na cidade. Sorriu. Era a primeira vez que não se sentiu seguro sem estar seguro.
Já estava escuro. Normalmente estaria tomado banho, já teria jantado, já estaria se preparando pra dormir. Mas como ele já ouvira a cidade nunca dorme. Nem suas luzes. Os que traziam notícias das cidades grandes diziam que luz alguma era poupada e que era bonita vê-la de longe. Porém era impossível ver uma lua brilhante iluminar o mato. Um sacrifício válido, constatou o rapaz sorrindo, apaixonado pelo neon, mas a olhar para uma luz não tão clara, por trás das nuvens que eram escondidas por alguns prédios.
Os prédios. Estava num bairro antigo da cidade quando passou a observá-los. Eram baixos, três ou quatro andares, mas surpreendia assim mesmo o herói andante. Continuou seguindo, até parar em uma praça. Impressionou-se com a quantidade de vendedores ambulantes das mais variadas coisas. Óculos escuros, acessórios - como cintos, brincos, colares -, vendedores de ervas, remédios homeopáticos, cordas, brinquedos e tantas outras coisas. Nenhum se preocupava em oferecer algo ao rapaz, ainda que este tenha se interessado por um óculos escuro e um brinquedinho bobo que lhe chamara a atenção. Os vendedores se desencorajaram. O rapaz estava com as calças sujas de terra vermelha e os sapatos também. Estava muito suado, cabelo bagunçado, camisa com quatro botões abertos de cima pra baixo. Não estava apropriado para qualquer tipo de negócio.
Interessou-se por um aglomerado humano que estava na extremidade da praça. Ônibus paravam lá a todo instante, mas nenhum era suficiente para levar a todos os que queriam. Foi observando cada rosto cansado e desesperado no ponto de ônibus. Aleatoriamente, acabou ficando encurralado à beirada do meio-fio com medo de ser atropelado por um carro e sem poder chegar pra trás pela falta de espaço. Um ônibus passou com o retrovisor raspando em sua cabeça. O rapaz foi levado para dentro ainda que não tivesse a intenção de entrar. Todos queriam entrar. Acabou parando na roleta, sendo pressionado por uma mulher gorda que estava atrás dele - e que também era empurrada pelos detrás que, por sua vez, eram pressionados a seguir para o interior do ônibus, pois muitos esperavam à porta querendo entrar.
_Dois e cinquenta - falou o cobrador impaciente.
Rapidamente tentou virar a mochila que trazia nas costas para pegar a carteira. Com muito trabalho e incômodo deu uma nota de cinco. Mas a multidão não esperou o troco. A mulher gorda que estava atrás dele foi pressionada pelos detrás e acabou impulsionando o rapaz para frente. Desajeitado - ou abestado, como ele mesmo referia a si - atravessou a catraca, foi jogando todo mundo pra frente, derrubando uma moça que carregava livros nas mãos e tentava segurar nos canos do ônibus.
Ouviu muitos palavrões dos da frente, desculpas dos detrás, a voz do cobrador gritando o troco, mas acabou sendo eliminado com outros que desciam. O motorista do ônibus acelerou depressa e então o jovem foi surpreendido pelos arranha-céus.
A cabeça quase fez um ângulo de noventa graus para trás. Tentou olhar andar por andar dos enormes edifícios. Modernos demais para crer. Praticamente irreais. A cidade parecia perfeita. Era o lugar que iria descobrir e dominar. Cada arranha-céu guardava mil escritórios nos quais poderia trabalhar. Nem que fosse servindo café, ainda assim poderia mandar uma carta para os amigos do seu lugar natal dizendo que trabalhava num prédio maravilhoso.
Finalmente, reparou nos carros, nos belos carros novos que passavam a todo instante sobre o asfalto. Não se tratavam das caminhonetes desajeitadas e sujas, velhas e difíceis de dirigir. Observou o movimento uniforme que limitava os motoristas a acelerar mais. Observou os radares, os semáforos, os pedestres que desafiavam a velocidade dos carros ao atravessar correndo as ruas tão movimentadas. Atenção especial aos semáforos. Ficou maluco de ver tanta gente buzinando, soltando palavrões de dentro dos seus carros fechados por causa do aparelho automático que estava apenas cuidando para que tudo corresse bem, para que nenhum acidente ocorresse.
Achou mágicas as luzes vermelha e verde que revezavam o controle das ruas. Bola verde, acelerando, bola vermelha, pare!, pneu derrapando no asfalto negro. E a faixa de pedestre. Uma "zebra ao contrário", como ele mesmo constatou. Não que já tivesse visto uma. Mas sempre fora curioso. Nativas da África, ele sabia, ele sonhava, imaginava, e cavalgava sobre uma quando tinha apenas onze anos de idade, sonhando alto antes de levantar às quatro da manhã para ajudar o pai na lavoura.
Acompanhou a ordem da mão vermelha do outro lado da rua, seguindo a coreografia dos transeuntes. Cidade. Então era assim. Tal como diziam pelo rádio. Como sonhava pisar sobre o mar, atravessar, estar nos lugares mais altos, cada dia mais próximo do céu. O rapaz delirava.
O desenho de um humano verde pronto para dar um passo regeu a multidão que esperava a travessia. Um carro derrapou na pista para frear. Nosso herói caminhou, pisando somente nas faixas brancas, olhando pra baixo. Mas sentiu um reflexo no rosto no meio de sua caminhada. Olhou para cima. Um arranha-céu tão alto e contagiante. Nunca vira igual. Nem mesmo na sua recente estadia na cidade grande. Dois elevadores enormes que, segundo ele, eram quatro vezes maiores que o único banheiro que tinha em sua casa. Os elevadores eram mantidos por estruturas externas ao prédio. De fora, era possível ver homens e mulheres executivas entrando no elevador e contemplando a vista da cidade, subindo quem sabe ao céu. Era uma modernidade surreal, janelas transparentes com adesivos escuros usados contra o sol. Nenhuma estava aberta e o início de noite estava quentíssimo. Isso só podia significar que lá havia alguma coisa que mantinha tudo refrescado. Era a "geladeira de parede" que certa comadre de sua mãe falara; uma espécie de aparelho que mantinha o frio na temperatura que se quisesse.
Ficou parado. O ângulo que fazia com a cabeça parecia o mais sobrenatural de todos. Seus olhos nunca brilharam tanto admirando algo. Era o prédio dos sonhos. Era lá que queria servir café. Era de lá que queria mandar uma carta aos amigos. Era de lá que queria tirar o retrato e mandar pra família botar na parede ao lado da foto de formatura de um primo distante. Imaginou-se limpando os vidros do elevador, admirando a vista da cidade que nunca dormia. Observando as luzes. Sonhou como era por dentro, como eram os corredores e de como eram largos, pensando neles cavalgar sobre as costas de uma zebra.
Mão vermelha. O duelo entre o moço e a cidade estava pra terminar.
Muita buzina não interferiu o pensar do rapaz. Nem os xingamentos. Mas sim um carro enfurecido - maluco talvez, quem sabe o motorista tivera um dia ruim no trabalho, quem sabe trabalhava no prédio dos sonhos - acelerou sobre o nosso herói que só sentiu a força dos para-lamas do carro sobre sua perna direita. Foi lançado no asfalto. Foi rápido demais. Esses carros novos, modernos, esses que invadiram as cidades grandes, são capazes de fazer o ponteiro do velocímetro fazer ângulos de quase cento e oitenta graus - ou talvez seja apenas um pouco de exagero dito para justificar a dor do pobre rapaz.
Aglomerados humanos que atraíam o jovem tornou-se um desejo imediato. Pensou estar salvo. Na cidade, há cobertura telefônica, hospitais, muitos médicos, ambulâncias. A cidade! Olhava para o enorme arranha-céu que o seduzira em sonhos e que o traíra na realidade sem virar a cabeça. Pôde ver sete ou até oito pessoas à sua volta, mas havia muito mais.
Não constatava mais nada. A dor impedia qualquer delírio. Ficou deitado no asfalto, no mar negro, sentindo o incômodo e um pequeno buraco sobre o qual ficara seu braço esquerdo. Sentiu-se em casa por hora, acreditando em um jeito diferente de ser acalentado pela cidade. Muitos pediam calma e paciência. Pediram pra se afastar, chamar bombeiros e tudo mais. Ficou deitado, admirando a atenção dos transeuntes, atrapalhando o trânsito. Sentia-se um fenômeno que acontecia sem censura. Na cidade, não há quem repare ou admire aquele que a admira. Mas, antes, há aqueles que param para ver o seu sangue e pra maldizerem a cidade, a violenta cidade, a cidade da qual faz todos sonhar, sofrer e odiar, exatamente nesta ordem, exatamente deste jeito, exatamente frio e cru.
A cidade, a grande cidade, a cidade da qual se ouve tanto falar, assunto do café, do direito, do trabalho, da política, da economia e por último, menos importante, do sonho dos que nunca nela pisaram. Pelo menos não de verdade. A cidade dos que ainda não a desafiaram.
Um comentário:
E eu nunca parei para pensar nisso. Embora já tenha discutido demais dobre o valor dos sonhos. A vida tem muito disso, de sonhos e do que os trava, de alegria e do que a trava, do amor, e do que a trava. Coitado do moço, travado pela sua ignorância e pela impaciência. Coitado de todos nós, que afinal, não vivevemos na mesma?
Belíssima estreia, Vinícius, embora longa.
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