domingo, 12 de dezembro de 2010
Atrevida
Antigamente não havia escolas particulares. Pobres e ricos estudavam juntos e misturados numa mesma escola pública. Eu era pobre. E a parte ruim? Bom, alguns filhos de médicos eram arrogantes e ignorantes. As professoras, grande maioria, se enquadravam no tipo “puxa saco”.
Era ridículo o modo das próprias educadoras agirem. Conseguiam menosprezar os pobres com perguntas simples direcionadas a eles, para então, algum rico ignorante intervir. Até mesmo um elogio era proposital. Qualquer palavra dita aos pobres era para nos fazer sentir o gosto salgado das lágrimas em nossos rostos. As professoras gostavam de nos ver humilhados, magoados, inferiorizados.
As gritantes gargalhadas e piadas de zombaria machucavam o ouvido e o coração dos mais humildes. E era incrível como quanto mais silêncio fazíamos, mais barulhos faziam os risos e as piadas de malgrado. Todavia, em onze anos que eu estava naquela escola, jamais alguém se atreveu a se defender por si em nome de todos. Contudo, sempre há exceções. Sempre há alguém para surpreender e quebrar um costume, mesmo que isso demore. E no dia 14 de outubro de 1979, a exceção, o alguém que surpreendeu, fui eu.
A professora me perguntou:
- O que é felicidade pra você, Alice?
Como era de se esperar, uma aluna interveio:
- Professora, como pode perguntar a ela o que é felicidade? Ela nunca viu a cor de um dinheiro a não ser pela TV. Ops! - Fez uma pausa sarcástica – Quero dizer, a não ser em nossas mãos aqui na escola né?... Porque pobre não tem televisão.
A zombaria exuberante ia começar a insultar ouvidos quando falei de repente. Depois de muito tempo em silêncio, estava na hora da voz de alguém humilde fazer os risos se calarem. Mostrar àquela aluna como é todos olharem para ela porque acabou de ser desprezada:
- E você Jaqueline, o que sabe de felicidade? Você é tão pobre quanto eu achando que dinheiro é a cor da alegria.
Foi impactante. Ninguém olhou para ela, mas para mim na verdade. Só que dessa vez ninguém ria, ou dizia algo. O silêncio pairou no ambiente onde os olhos de todos os demais deixavam transparecer que estavam surpresos. Pela primeira vez gostei de me sentir o centro da sala. Eles me olhavam, desconcertados, e inexplicavelmente aquilo me fez bem.
A professora pelo visto teve receio de perder o emprego. Começou a esgoelar para que eu saísse da sala. Mas ela não precisou gritar muito. Eu me retirei. Mas de lá de fora, eu podia escutar ela gritando ainda. Devia ser porque ela me viu obedecendo-a. Mas saí diferente do modo como ela esperava que eu saísse. Eu saí da sala sorrindo. Porém sorri com vontade, naturalmente. Estava contente. Nem me lembrava do que era propósito. Mas aquilo foi um insulto para ela, com certeza.
O nome dela era Iraíde. Se existe cobra em pessoa, ela o era. Odiava ver um sorriso estampado no rosto de um pobre. Quando não desprezava-nos descaradamente, fazia elogios. Mas no final tudo resultava em desprezo. Só que naquele dia, todos foram desprezados. Ela fez uma simples pergunta, Jaqueline interveio humilhando, mas eu respondi contradizendo-a. Tive que sair da sala por ter desrespeitado uma colega rica. – O que não acontecia quando um rico desrespeitava um pobre –. Fui humilhada, desprezadamente retirada da sala. Mas meu sorriso cuspiu neles tudo o que me haviam feito quando cheguei na porta e olhei para cada um deles. E então, saborearam pela primeira vez o gosto amargo do insulto.
Num lugar de extrema desigualdade social e moral, naquele dia, pobres e ricos se tornaram um só. Pela primeira vez, as pessoas das classes mais altas conheceram o desprezo, o insulto. Não desprezando e insultando. Mas sim os sentindo.
Desigualdade, bullying... Não é modernidade. Motivos muitos fortes me levam a acreditar que esses lixos estão espalhados em todos os cantos desde o começo dos tempos.
Alunos mesquinhos, professores influenciadores e injustos. Escola é mesmo o preparo para um futuro. Alguns estudam. Outros morrem durante o resto da vida. Agressão emocional é o assassinato de uma vida tranqüila. Depois daquele ano, não voltei a estudar mais.
Eu cresci, me casei. Certas coisas passam, porque você foge e os dias passam também. Mas quando algo se passa dentro de você, intensamente, você fica sentindo aquilo por muito tempo, sem poder fugir. Porque o que tem que fugir, é o que está preso. Mas como libertar algo que está preso dentro de você? Em que lugar ficam as portas?
Não se pode jogar lembranças ruins fora tão facilmente, apesar de apenas uma boa lembrança que seja, andar com você para o resto dos dias. Mas não me preocupo tanto. Cada um paga seu preço. A Iraíde está sofrendo com câncer agora. O preço dos demais virão.
Meu preço de ter sido pobre e nascido numa época pior do que a moderna foi adquirir uma pequena sensação de inferioridade. Abandonei meus estudos por isso. Mas aos poucos vou superando. Aprendi a sorrir para esses problemas. Afinal, sorrisos sabem ser insultantes. Porque problemas assim gostam do que os alimentam: a tristeza, a mágoa. Então sorrio. É o contrário do que querem e gostam.
Em qualquer situação de desigualdade, de ofensa, se atreva positivamente. Se não souber o que disser, não perca qualquer oportunidade de sorrir. Indiferença insulta e magoa mais do que qualquer tipo de desigualdade. Indiferença é o maior tipo de desprezo. Só não faça uma coisa que fiz: Não fuja. Fique, tenha coragem e procure ser indiferente. Coisas ruins nos chutam para frente quando permitimos; quando sabemos como cair.
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4 comentários:
Trabalho em escola particular.....me identifiquei e me empolguei com o texto.
muito bom!!!
gostei principalmente da última frase!!!
*-*
Muito bom e de grande reflexão.
Gostei bastante.
Grande reflexão, moça.
Levantei a aplaudo de pé.
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