quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Humanos



Me encontrei com Marcela quatro vezes. A primeira foi quando vim buscar seu irmão. Ela chorava desesperadamente ajoelhada no asfalto da rua onde Ivã, seu irmão de nove anos estava deitado, morto, com a cabeça ensangüentada. A segunda vez foi quando vim buscar sua mãe. A terceira foi quando vim buscar seu pai. E a quarta. Bem... Você saberá mais adiante.

. Pequenos grandes detalhes .
Ivã foi atropelado quando estava voltando da escola. Andava destraído.
Sua mãe morreu com câncer
O pai foi assassinado por um vizinho que o odiava

Eu sou a Morte. Só vejo a vida de perto quando venho buscar pessoas que morrem. Nessas minhas vindas, conheço vários tipos de pessoas. Mas vou contar as três partes da história da Marcela. É diferente, quase surreal. Me intriga. Então... Vou começar.

Jovem de dezesseis anos, de família muito bem sucedida. Eu diria que ela é forte. Diria não, estou convicta disto. Ela viu o irmão morto. Suportou seu desespero eloqüente diante de uma situação tão trágica que foi acontecer justamente com seu irmãozinho ao qual a meu ver era apegada. Por outro lado, dinheiro nem sempre resolve tudo. Sua mãe tinha câncer. Não reagia aos tratamentos caríssimos. Três meses depois da morte de Ivã, ela também partiu comigo.

A maioria das pessoas teme minha chegada. Mas a vida também tem suas tragédias. É claro o fato que os humanos tem uma capacidade enorme de fingir. Vítima de inveja, Ruan, pai de Marcela, foi assassinado pelo “melhor amigo” que era seu próprio vizinho. Você pode questionar quem teria inveja de um viúvo rico, com um filho a menos. Respondo logo a questão com:

. Ênfase numa palavra .
Rico
Foi um assassinato ridículo. Juliano, o assassino, foi rápido, frio e covarde: Atacou Ruan pelas costas, fincando-lhe uma faca de luxo que o mesmo tinha lhe dado de presente.
Aconteceu um mês depois da morte de sua esposa. Foi morto às nove da manhã. Marcela o encontrou meia hora depois após encher a banheira de sua suíte para seu banho matinal e descer ainda de camisola para dar bom dia a seu pai que sempre se encontrava na sala a essa hora. Avistou-o caído no chão, com o peito sobre o tapete que cobria o carpete. A faca estava jogada ao lado do rosto dele, com seu sangue dos pulmões.
Daquela vez, cônscia que acabara de perder as pessoas que mais amava na vida, o impacto da incredulidade foi maior. Com os olhos arregalados, ela tampou a boca com as duas mãos. Desesperada, trêmula, apanhou a faca que estava jogada ao lado de seu pai. A banheira já a esperava lá em cima, cheia. Ela subiu com dificuldade as escadas por causa de suas pernas que estavam bambas. Levava a faca na mão. Adentrou a banheira, sem tirar a roupa. E banhou-se. Cortou os dois pulsos, e banhou-se de sangue na verdade. Foi então que me encontrei com ela pela quarta vez, poucos minutos depois de vir buscar Ruan.

Sim, ela se suicidou sem nem mesmo chorar. Com todo perdão da palavra, apesar de forte, Marcela tinha certo azar. Perdeu o pai, a mãe e o irmão. Quando viu o pai morto, não conseguiu derramar lágrimas. É fortíssimo o poder que o psicológico parece exercer sobre os humanos. É loucura. Há várias mortes com influência dele.
Mas agora você deve estar se perguntando por que eu disse que Marcela era forte, sendo que esta se suicidou. Afinal, forte ela seria se estivesse viva, superando as perdas e mágoas, não é? Não!

. Eis um pequeno fato .
É preciso ser forte e ter muita coragem
Para se suicidar.

Marcela não teve medo de mim.
Pode dizer que isso tudo é estranho. Porque realmente é, e eu tenho certeza. Só que outro fato, é que os humanos é que são estranhos.

História obscura, sem final feliz, diferente das que já pode ter lido. Talvez sem nexo para você. Mas nunca lhe contarei uma história alegre. Para os humanos, serei triste, sem nada de bonito ou encantador. Obscura também. Pelo menos é assim que muitos me fazem e me enxergam.
Minhas histórias não terão porquê, talvez nem mesmo sentido. Peço que entendam: A Morte é um mistério. Eu sou um mistério. E assim serei até que me encontrem.

. Uma nota .
Os humanos... Alguns, nem todos.
Eles tem medo de mim.
Mas são eles que mais me assustam. Sem exceções.
Confie em mim. Os humanos é que são complicados. Eles é que são obscuros. Eu só faço minha parte. Quando eles forem o contrário, talvez eu conte uma história bonita.

8 comentários:

renatocinema disse...

Adorei a frase: É preciso coragem para se suicidar......Eu acredito fielmente nessa tese.

Jéssica Trabuco disse...

Que forte!

"Os humanos é que são complicados"
Disso eu tenho certeza ;)

BlackRabbit disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
BlackRabbit disse...

a Morte irmã do Sandman eh legal...
não tenho medo dela...
e ela não eh misteriosa...
muito pelo contrario!!!
eh uma das poucas certezas q todos tem na vida...
=p

renatocinema disse...

Rodolpho assista urgente a saga da familia Corleone é uma lição de como se conta uma grande história. Vai por mim.

Cristiano Guerra disse...

Gostei, há conclusões maravilhosas aí. Realmente, muito bom.

ps: crteza absoluta que você s inspirou em: A menina que roubava livros. ;*

Rodolpho Padovani disse...

Muito bom e como o Cristiano disse, tbm achei inspirado n'A menina que roubava livros.
Gostei bastante do impacto e da lição do texto =)

Letícia R. disse...

Awn, vocês estão certíssimos. A menina que roubava livros foi sim a inspiração *-*