sexta-feira, 15 de junho de 2012

A Lamúria Amiúde Pelo Abandono Desordenado



À minha frente, a imponência dourada da lua cheia de início de noite sobre o nervoso e obscuro Oceano Atlântico. Aos meus pés, a areia fria que parece acalmar a alma. Enquanto estou sentado aqui com uma garrafa de vinho na mão direita e uma taça de cristal quebrada na mão esquerda cortada. Sangue e vinho se misturam na areia e nas folhas. À quem me pergunta da dor: nada comparado ao que eu sinto dentro. O corte na minha mão parece o carinho de uma mão tépida. Pois não há dor mais intensa que a dor de amar e não receber amor. A dor de oferecer o seu corpo, mente e alma a uma pessoa e receber não muito mais do que uma fala gélida. É dessa dor que divide o espírito e putrefaz a carne que eu sofro. É com essa dor que vivo e, certamente, é dessa dor que eu hei de morrer. A minha ebriedade permite apenas que eu continue sentado e sentindo a brisa cortante de olhos fechados. Eu estou bêbado, mas mais do que bêbado do álcool eu estou bêbado desse amor que é uma droga poderosa em meu organismo em overdose.

Minha amada estava longe de ter a beleza angelical dos contos românticos. Sua sensualidade não tinha nada a ver com a sensualidade pura da deusa Diana. Era uma sensualidade atrevida e perigosa. Havia algo de hipnótico em relação a ela. Tão hipnótico que eu seria capaz de dar a minha alma por um beijo em suas mãos macias, os meus órgãos vitais pelo som doce da sua voz pronunciando o meu nome, a minha vida pela reciprocidade do seu amor. Eu vivo na esperança de um dia tê-la para me livrar dos meus medos mais assustadores, daqueles que me arrastam para o limite do poço mais profundo e continuam me puxando. Não há momento em que eu feche os meus olhos e não a veja me olhando com aqueles olhos de fogo e gelo. Daquela frieza que te queima a pele. Com aqueles olhos através dos quais eu podia ver a fúria do próprio Hades. Seus cabelos anelados e arroxeados emolduravam o seu rosto muito branco e de olhos cinzentos. Mas, como disse, olhos cinzentos que flamejam e que congelam. São os olhares da razão e da emoção que brigam entre os milésimos de segundos para aparecerem. Era uma garota excepcionalmente linda, e ainda mais linda com toda a indiferença e o poder que emanava dos seus poros. Pois tal poder era como energia estática e fazia com que seus cabelos volumosos e cacheados se encontrassem levemente bagunçados. O suficiente apenas para notar que aquela não era uma pessoa com a qual você iria querer brincar. As suas sobrancelhas arqueadas e o rosado do blush em suas bochechas eram como um aviso da elevada radioatividade de uma usina. De tal beleza era impossível não ser escravo.

Nós éramos Apolo e Dafne. Enquanto o meu amor era glorificado pelos deuses, o dela não passava da mais odiosa repulsa, ou pior, indiferença, pela minha pessoa. Eros, com a sua flecha de chumbo, me tornou para ela nada muito mais importante que as pedras que ela pisava com seus Louboutins pela rua. Mas com a flecha de ouro, Eros me fez sentir o mais puro e devotado amor por ela. Com suas flechas ele não cortou a carne, mas sim a minha alma. Mas nós apenas éramos Apolo e Dafne, pelo menos eu gosto de pensar assim. Pois eu a matei. Eu a matei ali mesmo, naquela mesma noite. Eu a matei enquanto estava tão entorpecido da dor como nunca estive. Não houve sangue, afinal eu a matei em mim. Matei aquele amor venenoso e vampiro. Quer dizer, não o amor, não se mata um amor, eu matei a obsessão que fazia de mim um moribundo. Que sugava a minha força vital e ainda injetava o veneno da dor nas minhas artérias. Fisicamente ela continua vivendo a sua vida. E hoje eu sinto por ela apenas o amor que eu não consegui arrancar, mas esse amor não é mais o fosso da minha energia vital. Pus um ponto no purgatório. Um fim no sentimento gratuito que outrora sentira. Cortei esse pedaço de mim com um machado afiado e depois cauterizei a ferida com o fogo que eu mesmo emanava. O fogo da dor que me queimava. Pois foi a dor e apenas ela que me deu a força para desapegar do loureiro e apenas levar algumas das suas folhas em minha cabeça. Até que eu tenha forças outra vez para apagar para sempre da minha mente aquela que entrou em mim sem que eu pudesse expulsá-la.




A escultura é conhecida como "Apolo e Dafne", esculpida pelo italiano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680).

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