quarta-feira, 30 de maio de 2012

O Lamento de Orfeu.



É com uma garrafa de whisky caída sobre a mesa e um ébrio eu cambaleando até a cama que a minha noite termina. Já na cama, termino o que restava do copo que trouxe comigo, derrubando metade do conteúdo no meu terno preto. Hoje o que eu sinto é aquela vontade avassaladora de simplesmente deitar aqui e não acordar nunca mais. Pois quando eu acordar, a dor que agora sinto será potencializada pela sobriedade e somada à ressaca. E talvez o meu corpo não consiga suportar mais dor. Não nessa semana de pesar e sofrimento. Não quando você tem um pedaço de ti brutalmente arrancado do teu corpo. Um pedaço que jamais irá se regenerar. Eu precisarei viver como um aleijado por toda a minha vida. Mas antes eu não tivesse uma perna ou um braço. Eu poderia viver assim. Mas o que me foi tirado está além da dor física pura e simplesmente. O que me foi tirado causou uma ruptura tão extrema e dolorosa no meu âmago que transcendeu as paredes imaginárias do meu interior e fez doer também a minha carne. Uma dor que ultrapassa o invólucro e se estende pelo tempo e pelo espaço. Me foi tirado o meu amor. Me foi tirada a minha vida, mas pior, pois a minha vida que foi tirada não era de fato a minha vida para tirar e eu fiquei aqui, vivendo, para perecer sob o pesar de uma ida que não terá volta.

Na fração de segundo que te vi no asfalto, deitada, com um pouco de sangue escorrendo pelos lábios e uma quantidade maior escorrendo pela tua cabeça, eu fechei os olhos. Mas não porque eu não quisesse te ver, mas porque as lágrimas nos meus olhos se tornaram tantas que a minha vista ficou tão embaçada que eu precisei fechar as pálpebras. Mas com os olhos fechados, após o momento de escuridão, eu pude ver perfeitamente. Eu te vi naquela manhã, algumas horas antes. E ali, com os olhos ainda fechados, eu pude ver a tua beleza que sempre me fora tão ofuscante. Menina linda. Cabelos tecidos nobremente em um suave tom de azul. Olhos que eram as profundezas do mais abissal oceano. Brancura que fazia a Lua derreter em inveja. Bochechas rosadas como em uma eterna embriaguez gostosa. Voz que ridicularizava da lira de Orfeu. Dona daquela beleza que embelezava o meio. Daquela beleza que não se contêm em si, precisa sair, se espalhando, se explodindo pelas paredes e pessoas. Daquela beleza que faria Afrodite gritar de despeito. Não havia como não ser perdidamente apaixonado por colossal magnificência. Abri os olhos novamente e os repousei na minha mão, que estava sobre a tua barriga. A minha mão que segurava um anel agora sem destino. Logo acima do local no qual a bala havia te atingido. Tinhas ido proteger uma criança que estava sob a mira de um revólver e acabou levando o tiro por ele, segundo as pessoas estavam murmurando ao meu redor quando cheguei aqui. Pois agora os meus ouvidos haviam sido tapados e eu nada mais ouvia além dos meus batimentos cardíacos e o gemido do meu próprio choro.

Isso foi há três dias atrás, e hoje, que foi o seu funeral, foi o dia que mais doeu. Doeu tanto, tanto que eu precisei me afogar na primeira garrafa que vi ao chegar em casa. A dor estava corroendo a minha carne e eu não mais aguentava aquela sobriedade incessante e esmagadora. Entorpecido apenas pelo pensamento devastador de que eu havia para sempre perdido aquela a qual eu amei mais do que a mim e mais do que a tudo no mundo. A qual abracei como um oceano a um continente. A qual beijei como o sol à lua em um eclipse. A qual amei como Apolo a Jacinto. E assim como Jacinto de Apolo, fostes brutalmente tirada de mim. Impiedosamente usurpada da minha pessoa. E agora eu preciso aprender a viver sem ti. O que faço? Como seguirei em frente sem o teu toque tépido? Como seguir quando a tua presença era o que me mantinha aqui? Não há respostas para essas perguntas. Eu apenas ficarei deitado aqui durante essa escuridão que será eterna. Durante essa noite sem estrelas e sem lua. Eu continuarei aqui deitado até que o meu dia amanheça e você esteja novamente em meus braços nos Campos Elísios. A vida não passa de uma mera existência fútil sem o peso do teu amor. Mas quando fechei os olhos novamente, estavas ali. E foi quando eu soube que apesar do teu corpo estar sob a terra agora, o teu amor continua aqui comigo. Presente na minha fala, no meu corpo e na minha bebida. O amor, ao contrário do corpo, não morre, apenas toma outra forma. E quando pensei desta maneira foi como se estivesses ali do meu lado reclamando do meu hálito de bêbado. E em um átimo eu não estava mais triste. Pois você estava ali comigo, e isso era exatamente tudo, o que eu mais precisava para viver.




A pintura é conhecida como "A Morte de Jacinto", pintada pelo francês Jean Broc (1771-1850).

2 comentários:

renatocinema disse...

Quanto sofrimento....angustiante.

Pitadas de Nelson Rodrigues anexada a melancolia corroída de Charles Bukowski. Ou seja, amei.


Adorei mesmo.

Que o amor sobreviva....enquanto houver sofrimento para sustenta-lo.

Anônimo disse...

Santo Deus, quanta dor. Surpreendo-me por não se render ao desespero. Apesar de que desesperar de nada adianta..
Curioso notar que a descrição da linda jovem que morre é exatamente igual a de minha personagem favorita - o que me deixou inda mais apaixonada pelo texto que, mesmo sendo trágico, foi um dos mais belos que já li .