Olho no espelho pela quinquagésima vez nesta noite, e me perco nos traços feitos pelo tempo. Ao lado observo uma fotografia antiga, onde eu me encontro num sorriso desconcertante de moça jovem que acaba de desbravar o mundo.
Todas as noites faço esse mesmo ritual, antes de dormir observo incansavelmente aquela foto. Sei que maltrato o meu coração maltrapilho desse jeito; sei que há coisas maravilhosas na velhice que podem me deixar contente. Mas nada será como antes. E disso eu sinto muita falta.
Sabe, quando se tem filhos, e netos, e um amor de mãos enrugadas para sobrepor a minha, essas reclamações de mim para mim mesma parece egoísta. Mas veja bem, eu sou feliz, muito. Mas também sou pura nostalgia, sempre fui. E esse é o meu jeito, não há outro jeito que me sirva tão bem quanto este.
E agora me pego outra vez mergulhada em melancolia, culpando o tempo por ter me levado embora de mim mesma. Nessas horas sinto como se houvesse um abismo em mim, onde eu insisto em cair todos os dias, e durante a queda eu sempre perco algo de muito valor.
Primeiro foi a dança, e isso me fez sentir como se cada célula do meu corpo fosse atingida. Quando olhei para o palco e não pude subir nele sem precisar da velha bengala, apenas chorei. Chorei lágrimas de sangue que me destroçavam a cada descida.
Depois foi o meu violino, que apenas reclamava emitindo grunhidos animalescos quando eu o tentava tocar com as minha mãos trêmulas. Fui obrigada a abandoná-lo. Ah, que saudade sinto...
E quanto mais o tempo se passava para mim eu percebia que mais coisas eram tiradas; e que as quedas em meu próprio abismo existencial se tornaram constantes. Pois logo depois, a minha memória começou a bater em retirada em pequenas doses. Houve vezes em que esqueci os nomes dos meus próprios filhos. E então tive certeza de que dor maior que essa não existia. Até perder a minha amiga, a minha fiel amiga. Ela, como eu, já estava limitada de tantas coisas... E quando a olhei deitada naquele caixão frio percebi que sorria. Talvez estivesse cansada demais de ser sucumbida pelo tempo. Ah, Amélia me foi uma irmã emprestada, que a vida me deu e que o tempo me tomou. No dia de seu enterro eu não consegui tocar dignamente a sua música favorita em meu violino, mas tentei, e sei que fiz feio. Mas ela não se importou, sei que não.
Há quem diga que tudo isso não passa de um capricho meu, mas eles não sabem o que eu sei, porque todos os que falam assim são jovens, estão vivendo correndo contra o tempo, mas quando perceberem já foram atropelados por ele ; e já estão velhos o suficiente para olhar-se no espelho e chorar admirando uma fotografia antiga.
Espero que consigam chegar até onde eu cheguei, e que tenham muita força para isso. Porque a velhice não é de toda ruim. Como agora, nesse momento que olho para trás engolindo doses de passado e observando o rosto que tranquilo em minha cama. Enxugo as lágrimas em minhas rugas cansadas, e vejo aquele sorriso de menino pregado no rosto do meu eterno garoto. Impressiona-me tanto olhá-lo, porque por mais que eu veja rugas e cabelos grisalhos, a alma dele transparece toda a sua juventude, e me sorri como na primeira vez em que foi apresentada a mim. E isso é o que me faz feliz nesses dias que eu sou toda nostalgia. Esse menino que me puxa de volta é o equilíbrio que preciso quando estou titubeando à margem de meu precipício temporal.
2 comentários:
Depois das minhas férias...nada como voltar a ler um bom conto num bom site.
Parabéns pelo texto.
Sem palavras! Pessoas costumam enxergar o passar dos anos de forma tão negativista e você conseguiu poetizar isto em um conto de forma tão sublime.
Menina, você mereceu a colocação no bloinquês e não quero mais te perder de vista. Estarei te perseguindo. kkkkkk
http://ouca-o-silencio.blogspot.com
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