terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os olhos da Anna

Quando menino eu costumava ir em feiras de brinquedos usados com o meu pai. Íamos sempre ao primeiro dia de cada mês, e eu passava todos os outros esperando para que o bendito dia de compra de brinquedos novos - ou pelo menos, novos para mim - chegasse. Foi num desses dias que eu conheci a Anna, ela tinha as mãos agitadas e tocava em tudo o que podia sobre as mesas dos brinquedos. Eu me aproximei curioso, e observei-a de perto, a mãe dela me olhou com um sorriso doce nos lábios. E a Anna  perguntou em seguida quem estava próximo a ela, pois estava sentindo cheiro de alecrim, e a sua mãe não cheirava assim. Eu dei um passo para trás instintivamente, e cheirei a camisa. A mulher de cabelos negros deu uma risada boa de ouvir, e a menina veio em minha direção perguntando quem era eu. Ela me fitava, mas parecia não ver. Olhei por cima do ombro, um pouco confuso. Ela deu mais um passo em minha direção e perguntou se o gato tinha comido a minha língua, e eu ri um pouco sem jeito. Então ela me disse que seu nome era Anna, e que não podia me ver, mas que me sentia muito bem. Eu abaixei a cabeça me sentindo envergonhado, disse em voz baixa que o meu nome era Leonardo, e ela assentiu colocando uma das mãos em meu rosto, perguntando se podia me ver do jeito dela. Eu disse um sim meio tímido, enquanto ela passava os dedos delicadamente por minha face. Eu passei a adorar mais aquele lugar naquele instante.

A partir daquele dia, comecei a encontrar a Anna em todas as feiras de brinquedos, e nós nos tornamos bons amigos. Eu passava as tardes na casa dela, levava as minhas pipas para descrever as cores que ela tanto amava. Foi ela mesma que me ensinou a achar descrições para as cores.

Numa tarde em que eu levei pela primeira vez uma pipa para compartilhar com ela a sensação de ver um pássaro colorido voar sobre nossas cabeças, me arrependi de imediato porque não sabia como o fazer direito. Então ela sorriu me levando até a janela e dizendo que a sensação que o vento deixa no rosto é calma, e muito agradável, e depois pediu para eu achar uma cor que pudesse dançar com o vento. Eu disse azul, como o céu num dia claro, que eu adorava olhar por horas e horas, vendo nuvens formar desenhos engraçados. Ela riu, balançou a cabeça em sinal positivo, e disse que de nuvens conhecia bem, já que o seu pai trabalhava numa plantação de algodão e sempre a dizia que as nuvens pareciam algodões costurados no céu.

Foi desse jeito que a Anna me apresentou ao seu mundo, e eu a apresentei ao meu. O tempo foi passando, e nós continuávamos juntos. Ela era tão esperta, e eu adorava isso nela.
Nos finais de semana, quando não tínhamos aula, ela me pedia para ir vê-la tocar piano, e era maravilhoso. Ela fechava os olhos, e deixava os dedos dançarem sobre as teclas, quando terminava, suspirava e sorria para mim. Perguntava como tinha ido, e eu dizia que fora maravilhosa, como sempre. Nos fins de tarde passeávamos no parque, e ela deitava na grama, dizia que gostava muito de sentir aquele pinicado no corpo. Eu me deitava ao seu lado, e a admirava por horas a fio. Gostava como o cabelo escuro dela ficava derramado ao seu redor. E ela me perguntava como o céu estava naquele determinado dia, então eu o descrevia. Depois ela ria, ria sempre. E em um desses dias, ela me disse para eu ficar atento ao céu, porque sentia vergonha quando eu a encarava por tanto tempo. Eu fiquei abobalhado, sem saber como ela sabia que eu a olhava o tempo todo. Até ela me dizer que me sentia de todas as formas, e que os meus olhares nadavam dentro dela, porque ela havia me ensinado muito bem como fazê-lo. Eu segurei a mão dela quando ouvi essas palavras, e ela apertou a minha. Depois de um tempo de silêncio, ela encostou a cabeça em meu peito, e eu tremi por dentro, sei que ela notou. Então ela falou que o meu coração estava sambando, parecia mais o dela. Disse me deixando ouvir o seu músculo dançante. Eu fiquei ali, e ela passou as mãos em meu cabelo, dizendo que era macio quase como algodão. Eu sorri, ela sorriu, e em um instante mágico estávamos selando os sorrisos com um beijo. O primeiro de tantos outros.

Depois de alguns anos a Anna se tornou pianista profissional, e eu a assisto em todas as apresentações, até hoje. E consigo me emocionar em todas elas também.
E se quer saber, estamos casados, temos duas filhas, e eu vivo ao lado de uma incrível mulher que me viu como nenhuma outra pessoa foi capaz.

5 comentários:

Sam Souza disse...

Nossa simplesmente lindo!!!
Adorei, parabéns :)

palavras-e-sentimentos.blogspot.com

renatocinema disse...

Esse final de semana assisti ao filme Professora de Piano, lindo.

Hoje leio seu conto com pianista, lindo.

Nada mais a dizer. Só que estou ouvindo um piano de fundo ao ler seu texto.

Anônimo disse...

Seu conto teve uma trilha sonora silenciosa na minha cabeça. Lindo.

Wanderly Frota disse...

Extraí daqui os mais belos sentimentos. Nem sei exatamente o que dizer, 'aplausos'.

Garoto Lunático disse...

Bonito final feliz, quase um Clássico Disney.