domingo, 17 de julho de 2011

Os sinos

Creiam ou não, o que me fez realmente acordar foi o cheiro forte de bebida, cigarros e uma seringa que me incomodava embaixo do braço esquerdo. Olhei para as pobres criaturas fragilizadas pelo álcool, pelo sono e pela teimosia, uma espécie de amontoado humano de sensível inocência. Soltei um tossido, dormira sem camisa e as janelas da casa estavam abertas. Provavelmente o dono da casa estúpido - que nem sabia eu quem era - tinha aberto as janelas pra não ficar cheiro algum. "Fracassou nisso, amigo", pensei sentindo o forte odor de gente suada, cerveja e outras coisas. A porta da sala estava trancada e eu não iria até a da cozinha. Pulei a janela, mas antes de saltar do parapeito observei de novo meus amigos dormindo. Ana não estava lá, tampouco meu amigo Rodrigo.

Caminhar na calçada me fez sentir bobo e tolo, um péssimo amigo. Há mais de uma semana eu não tinha notícias de Rodrigo. Eu o visitava no hospital todos os dias e passava horas lá, mesmo sem que ele dissesse ou abrisse os olhos. Mas já não suportava vê-lo naquela situação. Ele não levantaria mais, nunca abriria os olhos, isso eu podia sentir. E Ana, pobre Ana! Poderia eu estar com ela e dizer "tudo vai ficar bem, eu prometo", mas isso não seria exatamente o melhor a se fazer. "Pensei em desligar os aparelhos", disse ela. A proibi de ver Rodrigo no hospital até que ela melhorasse o próprio psicológico.

À porta de minha casa, às cinco da manhã, lá estava ela sentada no paralelepípedo com a cabeça entre as pernas e com o rosto marcado de lágrimas secas. "Seus pais me disseram que você foi ao aniversário da menina da medicina. Foi bom?", perguntou ela com um sorriso escondido. "Ela foi muito boa", respondi num sarcasmo. Chequei os pulsos dela, sem nenhuma gaze. Uma casca de machucado se formava numa linha reta em cada pulso. "Isso aí melhorou?", perguntei. Ana não respondeu. Alguns minutos de silêncio se passaram e ela desatou um choro impulsivo. "O Rodrigo é um idiota. Ele se jogou dentro do carro, uma hora não ia dar certo..." - e eu a interrompi dizendo: "Nós todos somos idiotas. Tem a ver com nosso sangue a irresponsabilidade com essa carne. Ela serve pra duas coisas, dizer que somos bonitos e pra machucá-la, mais nada."

Poderia eu dizer o que se passou por minha cabeça a cada minuto seguinte à minha última frase. Ana, aos sete anos, afogou-se na piscina da própria casa. A única coisa que a salvou foi seu pai com uma respiração boca-a-boca - incesto. Aos quatorze, tomou todos os anti-depressivos da mãe - algo de família. E aos dezoito, impulsiva e louca, cortou os pulsos depois de saber que o namorado estava em coma e que não passaria mais que três dias - e fui eu quem a encontrei jogada em cima da cama do Rodrigo quando fui buscar algumas coisas pra mãe dele.

"Você está fedendo, Max", disse ela enquanto enxugava os olhos. Soltei uma risada. "Não sou muito religiosa, Max, mas há um lugar que sempre paro pra pensar em respirar um pouco." Torci a boca para a direita - ela falava sobre a longa e alta Ponte Branca. "Gosto de ouvir barulho de sinos. Como se eles sentissem compaixão de mim. Hoje é domingo, dia de missa e... É a Ponte Branca. De cima dela dá pra ver a Igreja de São..." - e eu a interrompi: "Não importa de quem é, vamos estar lá na missa das sete. Mas vamos sair daqui agora. Vou te levar pra tomar um café." E lá fui eu carregando aquele peso gelado e inano que era Ana. Sofrida, amargurada - e não estou falando de mim. Bonitinha, é verdade, e suicida. Pensei longe, como sempre, perguntando-me como Rodrigo tinha realmente beijado e dormido com ela.

No café, falamos bobagens sobre professores, sobre a festa da noite anterior que eu não me lembrava muito e sobre o beijo sem-graça da garota da medicina. "É ela beija muito estranho", comentou Ana, alimentando minha imaginação.

"Vamos pra ponte e de lá vamos ver se temos os pecados perdoados. Pelo menos uns dez porcento hoje" brinquei.

Ana ficou olhando o mar. Virava a tornar para a cidade, no rumo da Igreja de São... São. Até me dizer que não devia ter ido até lá. "Venho aqui por causa da água. Tenho medo, desde de..." e eu só respondi "Eu sei Ana. Mas por que sempre te vejo aqui?" Ela olhou para baixo e disse que eu iria achá-la louca. Pensei em dizer que já achava, independente de tudo, mas resolvi deixar pra lá. "Venho aqui por que sinto medo. E esse medo me faz bem de alguma forma. Você e todos os outros sabem das vezes que eu quis fugir daqui, desse mundo. Mas... Quando eu sinto muito medo, praticamente no fim, quero sempre voltar atrás. Por isso sou grata pelos remédios coagulantes de sangue, pelas lavagens estomacais e pelo amor do Rodrigo" - e ela parou para respirar e pensar - "Pelo seu amor, pelo de todos os nossos amigos."

Por mim ela já teria ido embora, há muito tempo; mas Rodrigo gostava realmente dela. E os outros também. Então, fiquei na minha, portando-me como deveria.

"Você é o melhor amigo do Rodrigo. Ele disse há muito tempo que não me perdoaria se eu tentasse... de novo. Acha que se ele acordar, vai me perdoar? Mesmo sabendo que foi por medo de perdê-lo?" Olhei-a assustado. Não respondi. Finalmente senti um pouco de compaixão dela. Ela foi arrastando o corpo pela grade da ponte que a impedia de pular de lá até acabar sentada no chão aos prantos. Sentei-me ao lado dela e abracei-a com força, tentando ampará-la. "Ele não vai acordar", pensei comigo.

Meus sinos tocaram.

Se ele acordasse, a deixaria pra viver, finalmente depois de tentar evitar a morte dela por tantas vezes. Entretanto, isso eu não contei. Enfim, compaixão, meus caros, como senti das criaturas jogadas pela casa no meio do álcool, dos cigarros e outras coisas mais.

Um comentário:

renatocinema disse...

Como fã de Charles Bukowski e Nelson Rodrigues adorei o álcool, os cigarros e outras coisas mais. kkk