domingo, 10 de abril de 2011

Anjos



Tudo começou com uma vontade. Depois que Márcia casou-se com Frederico, descobriu que não podia engravidar. E sua vontade era ter filho. Queria tanto uma criança para cuidar, criar, que não lhe importava se a mesma saísse de seu ventre ou não. Apenas queria um bebê, que crescesse sob seus cuidados e carinho.
Recorreu então ao processo de adoção. Disse que queria adotar uma criança, mas queria um bebê. E uma moça do orfanato lhe disse que não havia bebês recém-nascidos. Contudo, informou que tinha uma garota de dezesseis anos que estava quase para parir, e que deixaria a criança no orfanato assim que esta nascesse, por não ter condições nem paciência, ou instinto materno para criar um bebê.
Que crueldade, pensou Márcia. Uma jovem de dezesseis anos não deveria engravidar, e um bebê não deveria ser jogado assim como um nada. Mas ela cuidaria dessa criança. Ela desejava essa criança, que no próprio ventre não podia ter. Cuidaria dela, daria carinho e tudo mais que a mão biológica se recusou a dar-lhe, talvez por ser jovem demais.
Por fim disse à moça do orfanato, que se essa criança nascesse, ficaria com ela, e seria uma ótima mãe. E duas semanas depois disso, nasceu Lara. A moça com quem falara Márcia a avisara do nascimento da criança, e ela entrou então com as papeladas e depois de um tempo, a criança foi morar com o casal.
Mas Frederico não gostava da idéia de ter em casa uma criança que não veio dele. Uma criança que não tinha o mesmo sangue. E discutia quase todos os dias com Márcia, pela adoção. Não a proibiu de adotar, porque se não Márcia ficaria doente. Mas ela estava adoecendo aos poucos, com tantas discussões por causa da menina que habitava a mesma casa que eles.
Lara já estava com dez anos, quando em plena luz do dia, Frederico começou a reclamar com Márcia no quarto.
- Essa menina não é minha. Não me obrigue a chamar ela de filha, porque ela não veio de mim. Também não é sua, não foi gerada em você. – Dizia ele estupidamente enquanto gesticulava com as mãos, irritado.
- Deixa de ser ignorante, homem. – Pedia Márcia, indignada como se as palavras dele fossem novidade para ela. – O fato de uma pessoa não sair de você, não quer dizer que ela não merece carinho. Não temos o mesmo sangue, mas nossos corações nos tornam uma família.
- Não venha com essa coisa de corações. Foi um erro ter adotado essa menina, e pronto.
Márcia começava a chorar. Olhou num instante para o chão, e voltou os olhos para Frederico, que a olhava, com a cara fechada, e disse:
- Sabe o que foi um erro? – Fez uma pausa. Ele esperava o que ela tinha a complementar. Então ela continuou – Um erro foi eu ter me casado com você!
Ele ficou perplexo, por um minuto. Mas logo voltou a sua frieza e arrogância.
- Se foi um erro, o que faz aqui na minha casa ainda?
- Eu é que me pergunto. Mas não me diga pra sair, porque eu mesma o farei.
- Acho bom. E leve aquela menina com você!
- Eu não a deixaria por nada. – Disse, virando-se para a porta que estava entreaberta. E então viu uma menina de cabelo loiro passar correndo pelo corredor. Era Lara. Ela ouvira tudo.
Márcia percebeu, e não hesitou em ir atrás da filha. Deu as costas para o marido, e passou correndo pela porta, seguindo pelo corredor dos quartos. Foi encontrar Lara na dispensa. A menina sempre ia pra esse lugar quando queria ficar sozinha. O por quê não se sabe. Márcia abriu a porta, e a viu sentada num caixote com as mãos nos joelhos e a cabeça para baixo. A luz do sol que atravessava a janela deixava ainda mais luminoso seu cabelo loiro que estava preso numa trança atrás.
Assim que Lara percebeu a presença da mãe adotiva na porta, começou dizer chorando:
- Por que nunca me disse que eu era adotada?
Sua voz mansa e tristonha enchia o peito de Márcia de agonia.
- Eu tentei falar, mas as pessoas me impediram no começo. Mas depois eu resolvi não dizer, porque EU me considerei sua mãe de verdade. Achei que seria tão boa mãe, que nunca precisaria te contar que era adotada.
- Você é uma boa mãe. – Consolou-a. – Mas me escondeu a verdade, e isso está me doendo agora. Mãe, quem é a minha mãe biológica?
- Já deve ser mulher, não a conheci. Engravidou de você com dezesseis anos, e então te jogou num orfanato pelo fato de não querer ser mãe, e também por não ter condições financeiras.
Lara levantou a cabeça, olhando-a assustada.
- Que é, você num queria saber da verdade? – Disse Márcia prontamente.
Lara calou-se. Por fim perguntou:
- Mãe... Quem sou eu? – Seus olhos azuis eram lavados por lágrimas que lhe escorriam pelo rosto claro.
Márcia fitou-a tão profundamente, que a menina podia sentir que apesar de ser adotada, ela podia acreditar fielmente que tinha um amor de mãe. Porque Márcia o ostentava na teoria e na prática.
- Quem é você? Lara, meu amor. Você é um anjo que apareceu, porque a vida é um inferno.
Fora uma frase impactante. Mas ambas sentiram o calor de cada palavra que fora pronunciada por Márcia. Lara levantou-se e foi de braços abertos em direção da mãe adotiva. Abraçaram-se longamente. E o carinho era tanto, que Lara até esqueceu-se que era adotada. E também, isso não lhe doía mais. O que lhe importava agora, é que tinha uma mãe que a amava. E daí que era adotiva? Não culpava a mãe biológica, mas também não queria vê-la. Porque foi em Márcia, que ela encontrou o que chamamos de amor de mãe; foi Márcia que concedera a ela a oportunidade de ser filha. Ela não sabia de toda a história, sobre o que levara Márcia a adotá-la, nem nada. Mas sabia que Márcia a amava. E isso bastava.
Márcia acariciava o cabelo da menina, enquanto se abraçavam, com choros leves. Aqueles choros que escorrem dos olhos quando se passa a sentir alívio e conforto. Estava tão feliz. Se mudaria dali, deixaria Frederico, e moraria na casa de sua mãe até arrumar uma outra casa para ficar. Mas isso era o de menos. O importante é que estaria com Lara. Ah como era grande o afeto que ela sentia por aquela menininha. Foi ela quem concedeu a Márcia o privilégio de poder ser mãe, visto que não podia engravidar. Então se abraçaram mais forte, e um sorriso começou a nascer no canto dos lábios das duas.
A vida realmente deixa de ser um inferno quando a gente encontra um anjo. E a vida delas podia ser considerada um céu, apesar de tudo. Elas tinham uma a outra, consideravelmente. Cada uma tinha seu anjo na vida. Um anjo. Era assim que eram uma para a outra, além de mãe e filha adotivas.


# Pauta para Bloínquês


5 comentários:

renatocinema disse...

Os contos desse site estão cada vez melhor.

Pitada de O Bebê de Rosemary com Cidade dos Anjos.

Parabéns sinceros.

Jéssica Trabuco disse...

verdade, existem anjos que aparecem para melhorar as nossas vidas.

Dani Ferreira disse...

Que história linda. Nada se compara ao amor de uma mãe, mesmo que não seja biológica né? Ainda bem que ela não é aquele tipo submissa ao marido e tomou a atitude de viver longe dele *-*
Bgs :*

BlackRabbit disse...

lindo...
como sempre...
adoro o jeito q vc escreve...
*_______________*

Cristiano Guerra disse...

Letícia, no dia que você não arrasar e dexar o coração da gente saltitante, eu juro que vou achar estranho.