segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O Demaquilante Mágico

 


Ele, com olhos infantis, postou-se diante do letreiro luminoso, Casa de Espelhos. Emoldurada em pele enrugada, a expressão travessa que carregava refletia uma infantilidade dissonante com as cinco décadas vividas. A traquinice, em geral, caía bem às faces pouco gastas e não em pessoas de meia idade. A estas, a gravidade era de melhor tom e validade. Entretanto, algo havia em seu bolso que o tirava da habitual taciturnidade e o deslocava aos remotos tempos de juventude, transmutando-lhe as fibras mais íntimas em urgente ansiedade.
_ Boa noite, meu senhor! – saudou, 15 minutos antes, uma estranha e esguia figura, semelhante a um mágico.  
_ Boa noite – respondeu Oswaldo um tanto constrangido.
_ Percebo que irá entrar no magnífico parque, certo? 
   Desconfiado, assentiu com um gesto.
_ Pois veja o que tenho aqui – continuou o mágico, retirando a cartola e apanhando de dentro dela um pequeno frasco de vidro, contendo um liquido vistoso de coloração amarelada.
   Oswaldo pegou-o e, com certa dificuldade por estar sem óculos, leu o rótulo:
_ De-ma-qui-lan-te?...
_ Exato!
_ O que é isso? – perguntou confuso.
_ É uma substância comumente usada pelas mulheres para limpar a maquiagem – explicou o rapaz de forma precisa e, adiantando-se ao estranhamento de Oswaldo, ponderou: – esse, porém, que o senhor tem em mãos, é mágico.
   Oswaldo franziu o cenho, estranhando aquela conversa sem pé, nem cabeça. Até onde sabia, as mulheres tiravam a maquiagem com água e sabão, não necessitavam deste tal demaquilante. Quanto mais mágico...     
_ Agradeço, mas não vou levá-lo, não senhor – obtemperou.
_ Leve-o sim – respondeu o mágico de forma enfática. – Não precisa pagar e homens também podem usá-lo.
   Oswaldo abaixou os olhos humildemente e analisou o frasco por longos segundos. Ao voltar o olhar na direção em que o mágico se encontrava, surpreendeu-se: ele não estava mais lá. Sem opção, depositou-o no bolso da calça jeans e apresentando o bilhete, que há pouco comprara, às portas do grande parque, entrou.
   Uma infinidade de famílias se exibiu a sua frente.
   Algumas mães, aflitas, apressavam-se em acompanhar os filhos ansiosos. Outras, de mãos dadas com suas crias, desfilavam a passos lentos, escolhendo, minuciosamente, os brinquedos que poderiam ou não ir. Ao mesmo tempo, dezenas de casais encontravam-se sentados ao redor de um trailer de lanches, abocanhando cachorros-quentes e tomando refrigerantes.
   Oswaldo exaltou-se com a multidão que o circundava. Como encontraria a esposa e a filha que ali estavam desde cedo?
   Guiado pela intuição, começou a buscá-las por entre as galerias de brinquedos e barracas variadas. Muitas cores se revelavam aqui e ali, encantando-lhe os sentidos. Em uníssono, o brilho das estrelas confundia-se com a iluminação do local. Um cheiro inconfundível de pipoca, misturado ao de algodão doce, flutuava pelo ar. Vozes, risos, alvoroço e muitos rostos felizes mesclavam-se pelos arredores.   
   Pouco a pouco, a seriedade de Oswaldo desvaneceu-se, dando lugar a um sorriso torto e sufocado. Ali, naquele ambiente de opções e pluralidade, a atmosfera alegre começou a contagiar-lhe. A cartada final, entretanto, foi dada ao final de uma galeria, quando, ao deparar-se com uma casa de espelhos, seus lábios se abriram de forma abrupta e infantil.
   Desde pequeno, o seu maior sonho sempre fora, justamente, passear pelos corredores de uma casa assim. Porém, nunca tivera a oportunidade. Os parques que ali chegavam eram, em sua maioria, paupérrimos de excentricidades. 
   Eufórico, comprou um bilhete de acesso e parou diante dos pequenos portões que o levariam à realização do sonho. Não havia ninguém ao redor. Pousando a mão direita sobre o bolso da calça, uma idéia assaltou-lhe os sentidos: por que não passar o tal demaquilante mágico lá dentro e conferir a eficácia do produto?
   Adentrou-se.
   Um corredor comprido e espelhado, entrecortado por outros dois, estendeu-se a sua frente. A alegria foi exorbitante. Um arrepio excitado percorreu-lhe a espinha. Vagaroso, seguiu reto, virando o primeiro à esquerda, depois, o segundo a direita, e, assim, continuamente. Alto, baixo, gordo, magro. Assistia-se de todas as maneiras possíveis pelas laterais. Os corredores pareciam não terminar, repetindo-se em reflexos infinitos.
   De súbito, espantou-se. Ao final de uma galeria estreita, com paredes nuas, um espelho alto exibia-se suntuoso, acolhido por uma moldura dourada e arabesca. Olhando para os lados, para ter certeza de que estava só, caminhou em direção ao objeto e tocou-lhe sutilmente com as pontas dos dedos. Rapidamente, meneou a cabeça para os lados, espantando a expressão de deslumbre que o acometia, e pegou o demaquilante.
   Despejou o conteúdo em sua mão esquerda e com a destra colocou o frasco novamente no bolso. O liquido vistoso não apresentava cheiro algum. Oswaldo cerrou as pálpebras e o esfregou sobre o rosto de forma rápida.
   Ao abrir os olhos e fitar o espelho, o queixo caiu acompanhado de um leve murmúrio de horror.
   Um jovem, de aproximadamente dezoito anos, anunciava a um casal de adultos a aprovação para o curso de Direito na Universidade Federal de Recanto Azul. O adolescente, que falava com fingida satisfação, era Oswaldo mesmo, há muitos anos atrás. Os pais o haviam forçado ao curso. Se houvesse tido escolha, teria se graduado em Comunicação Social, e se dedicado ao jornalismo cultural.
   Um a um, os clientes que sempre atendera contra vontade, apareceram pela superfície do objeto, acompanhados, logo em seguida, de diversas situações: a esposa grávida de uma criança do sexo feminino, as humilhações que a sogra o submetera, o copo de Stella Artois, a viajem a Lisboa, o gato, a gravata vermelha, o terno em dias de calor...
   Tudo que detestava e calava, exibiu-se ali.  Toda a maquiagem usada para esconder os desejos mais íntimos – os verdadeiros – desvaneceu-se em uma piscadela de olhos. O espelho trouxe a tona toda a sua dissimulação, toda a sua passividade perante a vida e incapacidade de dizer não.
   Oswaldo, olhos perdidos e rosto pálido, meditou por alguns instantes: o demaquilante realmente era eficaz. Lavava a alma de tudo aquilo que a sufocava.
   De um momento ao outro, deu as costas ao espelho. Com certa dificuldade, saiu da casa e do parque, indo direto ao ponto de ônibus. Deixou mulher e filha para trás. Ele não queria mesmo ter ido ali. Outras coisas o aguardavam.

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