quarta-feira, 14 de março de 2012

Enquanto sonho



Todos os dias eu sou levado ao mesmo sonho, e não sei dizer se isso é a minha maior alegria ou o meu maior tormento. Há dias em que anseio por isso mais do que qualquer outra coisa, e há outros em que simplesmente não durmo só para não ter de te perder outra vez. É como um fardo ao qual tenho de carregar, e não importa para onde eu vá ou onde eu durma, o sonho sempre é o mesmo.
São duas e quinze da manhã e eu ainda não peguei no sono, estou andando de um lado para outro no quarto, vendo a persiana balançar com o vento frio de Outono.
Estou exausto, mas esse é um daqueles dias em que eu não tenho forças para te ver partir. Há quem diga que nós sempre somos fortes o suficientes para agüentar a dor, mas essa parece ter se tornado um buraco negro dentro de algum lugar dentro de mim, com força desconhecida e velocidade angustiantemente lenta, e que constantemente me suga em pequenas porções. O meu medo é que esse buraco negro além de se alimentar também me regurgite gradativamente, me fazendo ficar preso nesse ciclo abissal até onde minha mortalidade permitir.

Sento na cama com o rosto escondido entre as mãos, sinto a barba por fazer em minhas palmas e lembro-me das suas reclamações em determinada época do mês sobre a minha barba espetar o seu rosto, e em outros dias, de como você sorria quando eu a passava delicadamente em seu pescoço, dizendo que fazia cócegas. Não, não era bipolaridade, eu nunca a acusei, mas eu sempre soube que você era como a lua - cheia de fases, e eu me esforçava para conhecer todas elas, no fundo eu sabia que por mais fases que você tivesse, você sempre seria a minha menina, independente de estação ou época do mês eu sempre procuraria em seus olhos aquele brilho pueril, e me perderia em seu sorriso torto ao me flagrar te observando silenciosamente.
Não consigo evitar, tais lembranças sempre me arrancam lágrimas pesadas, e o choro me carrega para um sono indesejável. Nessa noite, meu sonho tem gosto de lágrima como em todas as outras desde a sua partida.

Me vejo em um campo coberto pelo entardecer, nuvens acinzentas se aproximam e tomam conta do lugar rapidamente, a chuva parece apressada mas ainda não cai. Observo o horizonte coberto pelo capim alto, o vento o faz dançar calmamente como se fossem ondas sendo movimentadas a cada passar. Um cheiro forte toca o meu olfato e, involuntariamente uma lágrima escorre por meu rosto até tocar a minha boca me fazendo sentir aquele gosto salgado. É o gosto que tomou conta de minha vida após a sua partida. E o cheiro que me toma nesse momento é aquele que eu sentia quando afundava o rosto em seu cabelo dourado como o próprio capim que vejo balançar.

O vento se faz mais revigorante e feroz, até se acalmar mais uma vez enquanto você surge no meio do capim alto se aproximando com uma expressão doce presa no rosto. E a observo com os olhos empoçados, os ombros caídos e as costas pesadas, já sei o que acontece depois. E é simplesmente doloroso demais, quero sair do sonho, tento sair, me obrigo a sair, mas não posso. Nunca consegui, e às vezes, mas só às vezes, quando eu já estou cansado demais eu a culpo por isso. Me perdoe, esse é o meu lado humano tentando amenizar o irremediável.
Você fica frente a frente comigo, passa as mãos finas em meu rosto tentando secar aquele mar desgovernado que desce por meus olhos. E não adianta; nunca adiantou.
Eu enrosco as mãos em seus cabelos e a abraço forte, querendo tirar você desse lugar, querendo levá-la comigo.  Vejo seus olhos lacrimejarem enquanto você me encara com um olhar compreensivo, como se dissesse que exatamente era o que você tentaria fazer se estivesse em meu lugar, que me entendia bem, e eu sei disso porque você sempre foi assim; sempre foi capaz de me entender por mais falho que eu fosse.  Afundo o rosto em seu cabelo e inspiro aquele cheiro para dentro de todos os meus cantos, você se afasta um pouco como se o tempo estivesse acabando, e está mesmo, eu sei.

Vejo sua pelo ficando cada vez mais pálida como se estivesse se desfazendo, a beijo com todo o amor existente em mim e sinto que você faz o mesmo. Sinto os meus dedos apertarem sua pele, e por um momento tenho a terrível impressão de que eles podem ultrapassá-la. Você se afasta e eu seguro a sua mão em desespero, por que só dessa vez não pode ser diferente? – penso. E você parece ouvir tal pensamento, seus lábios se movem calmamente e leio suas palavras mudas.
Não deixe a dor tomar conta de todo o seu ser. Eu estou com você em todas as horas do seu dia, e estarei por toda a sua vida. Nos veremos outra vez.
O meu choro agora é acompanhado por ruídos dolorosos, entre soluços vejo os seus dedos sumir entre os meus, quero impedi-la, mas ainda pareço anestesiado por suas palavra nunca ouvidas antes, ou apenas nunca observadas, não sei ao certo. De todas as vezes que estive aqui, acho que nunca tinha me permitido ouvi-la de verdade.
E mais uma vez eu a vejo partir, a chuva começa a cair timidamente e sinto suas lágrimas se misturarem às minhas. Sou tirado daquele lugar com mais delicadeza do que o comum, e pela primeira vez desde o dia da sua morte, eu senti uma esperança inexplicável se instalar em meu peito enquanto repetia mentalmente as palavras que haviam me tocado tão suavemente, sim, você nunca me abandonaria, estava comigo o tempo todo, mas os olhos às vezes nos cegam e não nos permite ver aquilo que faz o mundo de cada ser vivente ter sentido.

Quando acordo não estou desesperado como todas as outras vezes em que eu sonhava com você. As suas palavras permanecem gravadas em minha memória e soam reconfortantes até o dia em que nos veremos outra vez. E nunca tive tanta certeza em minha vida como tenho agora, entre um suspiro aliviado observo a cortina sibilar tranquilamente em minha janela, o vento toca o meu rosto como se beijasse minha face, e aquele cheiro me invade outra vez - o cheiro do seu cabelo dourado. Fecho os olhos e absorvo a sua presença, no íntimo sinto que ela sempre esteve aqui, dentro de mim.

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