quinta-feira, 2 de junho de 2011

"Pára-choque"*

Abri a porta da sala e a mulher de cinquenta anos, cabelos pintados de vermelho à altura dos ombros e volumosos - arquitetados sob uma franja ridícula - me esperava sentada no sofá, assistindo o jornal. Seus olhos manchados de marrom, seus dentes já amarelos; tudo enxerguei à primeira vista ao entrar dentro de minha casa.

Cumprimentos. "Estou com uma dor nas costas hoje." Ergui a cabeça como quem presta atenção, procurando uma brecha na entonação da voz de minha esposa para fugir pro quarto. Foi o que fiz. Nos corredores da casa, uma barulheira vinha do quarto de minha filha. Bati à porta do quarto de meu filho. "Tô dormindo, droga!"

Bem ou mal, trata-se de minha rotina. Tomo um banho rápido, leve, pra não pesar muito. Normalmente, Anita, a empregada horrorosa que minha esposa colocou no lugar duma gostosa que eu mesmo tinha contratado, já tem o jantar preparado. Basta eu aparecer na mesa cozinha e ela nos serve.

O moleque sai com  a cara amassada de dentro do quarto, com um forte mal hálito. Minha menina nem presta atenção; só come, come, come... Olha pedindo pra se retirar. "Mal educada!", responde minha mulher depois da menina já estar pra lá dos corredores. Comento sobre o carro novo e minha satisfação. Minha mulher se mantém focada no próprio prato.

E é aí. "Vou ver a novela", diz ela. "Tem uns caras aí me chamando, já volto", diz o rapaz.

Garagem.

Dá vontade de nem participar mais do jantar. De correr pra garagem, olhar o carrão que mantenho guardado. Um pará-choque fantástico reforçado de aço. Uma cor neutra mesmo debaixo de luz. Libertação.

"Vou dar uma volta pela cidade", proclamo rapidamente ao passar pela sala. Minha mulher está mais preocupada com alguma traição da ficção.

Pego o carro e procuro algum lugar longe, pra lá da classe média, pra lá do moleque de mau hálito, da menina egoísta, da mulher hipocondríaca, do meu eu fracassado.

Espero até as dez.

As ruas se esvaziam, crianças já não brincam mais esse horário. Nas periferias daqui, não se passa das nove na rua. Só se vê os passos rápidos de trabalhadores que descem dos ônibus correndo procurando a própria casa na esperança de dormir e no outro dia, antes do sol raiar, levantar pra trabalhar. É por aí que vejo gente de verdade.

Até que alguém mais frágil, numa sapatilha velha, numa saia pra baixo dos joelhos, alguém que segura firme os próprios braços contra o corpo na tentativa falível de vencer o frio da noite de garoa, tenta chegar em casa.

Não há ninguém nas ruas.

Faço as voltas necessárias para me manter no sentido em que possa contemplá-la de frente. Passo uma vez e fito-a com os olhos. Ela não pode ver-me. Os vidros escuros que insisto dizer "protetores contra o sol" a impedem disso no meio da noite. Dou a volta no quarteirão... Antes de me virar na rua em que ela está, apago os faróis, diminuo o barulho, não acelero. A inércia toma conta do veículo que desce a leve inclinação da rua, a perspicaz libertação... Viro.

Devargazinho pego o movimento ladeira abaixo. A mulher olha pro chão com passos rápidos. Nem repara em mim. E acelero. Ela só se dá conta do quão perto estamos - eu e meu carro - quando as borrachas dos pneus sobem na calçada. O pára-choque mais caro do mercado bate de frente na altura dos joelhos. Do volante consigo sentir dois ossões se quebrando. Ouço um grito desesperado. Ela voa longe. Êxtase total.  

Acelero dali. Dou mais algumas voltas na cidade, encho o tanque bem longe, volto pra casa. Na garagem, olho o pára-choque. Liso! Certos consumos são investimentos de lazer. Entro pra casa, minha mulher está intrigada com o enredo dramático de um filme na TV. Ouço o teclar do computador vindo do quarto de meu filho, uma briga de namorados adolescentes ao telefone de minha menina. Vou pra cama. Hora de dormir tranquilo e conformado com a vida que levo.

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*BASEADO EM UMA CRÔNICA DE RUBEM FONSECA

Um comentário:

Bird disse...

E ele faz isso porque sua vida é um tédio?

Gostei do blog, estou seguindo^___^