quinta-feira, 31 de março de 2011

Todos os brilhos dos meus olhos


“Quando te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho”

CAETANO VELOSO

Negros até o fundo, até a alma. Pois bem. O reflexo do abismo negro dos meus olhos no espelho me contagiava. Um círculo ao todo opaco, mas com um brilho, uma ponta de brilho metálico no extremo fundo. Não, não é a luz do fim do túnel. Na verdade, é o início dos problemas. É uma espécie de dádiva que abre caminho do interior dos meus globos até chegar aos olhos dos outros. É a prova prática da superioridade da imensidão que provoco.
A teoria é a de que qualquer ponta de reflexo faminto deles mesmos me entorpeça. Isso explica todas as minhas observações profundas, minhas atenções aos outros, minhas anotações mentais. Uma expressão brava disfarçada pela busca da ponta metálica no interior dos olhos dos outros. Provérbio: “os olhos são as janelas da alma”. É de um determinismo que me provoca ânsias. A alma é muito pouco reparada a essas “janelas” maravilhosas.
As buscas mais cintilantes as quais me proponho são frutos de uma verdadeira curiosidade em descobrir olhos tão efetivos quanto os meus. Uso deles como um instrumento pra colocar qualquer outro olhar à prova. São como uma britadeira. Penetrantes ao fundo. Normalmente, semanas não são necessárias para que eu possa prever as ações dos outros. Sempre posso: normalmente, as pessoas não conseguem esconder os olhos. Precisam deles para tudo. Para caçar mesas vazias, inclusive.
Numa das minhas aventuras, uma moça de rosto claro, cabelos encaracolados em um loiro escuro, e os olhos, os olhos! Até o seu branco não era comum; branco leitoso e violento como uma nevasca me impediu de chegar à sua íris no primeiro dia que a vi. Estava sentado no interior de um auditório onde aconteceria uma palestra sobre alguma área da psicologia humana – deveras interessante; interessante lugar para se encontrar pessoas de olhar profundo - quando ela chegou procurando um assento. Não observei o que trazia na mão esquerda, mas com a direita segurava firme uma bolsa – posso jurar que estava vazia. Tive um trabalho fenomenal até conseguir chegar aos desenhos dos seus olhos. Primeiro porque seu rosto era emoldurado por seus cabelos, verdadeiras colunas, como as do Vaticano, que se apoiavam na cintura e lhe subiam. Através dum corte reto e duro, eram a moldura de um rosto épico. A pele branca, pálida e morta despertava em mim o desejo de vê-la ao todo, em todos os confins do corpo, nas curvas das coxas, nos desenhos da cintura, nas costas – que pensei ser como um deserto de neve.
Até então, eu nunca perdera tempo observando o resto. Os olhos sempre foram o foco, mas eu fora impedido de chegar até eles. Talvez a beleza que se realçava em mim fosse tão singular nos olhos que me pareceu gigante o exagero dos elementos que compunham a figura da moça. Ela se sentou três fileiras à minha frente. Quando fui embora, ela ainda mantinha a cabeça baixa e a franja comprida me impedia de notar o desenho dos seus olhos. Voltei pra casa instigado; o que acontecera comigo não me permitiu penetrar nos olhos dela, de estar com ela. Eu queria vê-la de novo. Não dormi.
A semana de palestras se seguiu. Ela chegou atrasada em duas palestras, desapareceu nos intervalos. Na última do evento, ela chegou à tempo, ainda perdida, sem saber onde se sentar. Foquei-me gritando dentro de mim “olhos, olhos, olhos!” e foi aí que ela virou-se pra lá, pra cá e sentou-se. Minha britadeira ótica não tinha nem mesmo cavado meio centímetro da profundeza do abismo dela.
Passei toda a palestra lá sentado, querendo vê-la se levantar para ir ao banheiro, beber água, mas os minutos passavam e ela continuava imóvel como uma pintura na moldura. Até que ela se preparou para ir.
Um desespero tomou conta de mim, precisava olhá-la nos olhos, penetrar a imagem gélida daquela figura tão excitante e assustadora que se sepultava em neve a todo o segundo. E então, levantei-me automaticamente, por impulso, ultrapassei as fileiras, incomodei os ouvintes e, quando me dei conta, estava eu à sua frente, tocando-lhe com o dedo indicador o seu queixo, erguendo-o até que finalmente eu pudesse saltar no abismo dos olhos dela.
Louco, louca. Ela nem se assustou com um estranho lhe erguendo o rosto. Eu a olhava nos olhos. E foi aí que dei um pulo pra trás, assustado. Poucos segundos cavei cada milímetro da íris, da pupila e me perdi por centenas de anos num mar de tristeza e angústia que não posso falar. Era muita coisa pra olhos que supostamente eram tão jovens. E, incrivelmente, ela fazia mesma penetração dentro dos meus olhos. O par de olhos se tratava de um universo pré-histórico escuro.
As imagens dos seus olhos não me deixariam nunca mais em paz. Respondi que a confundira com um estranho. O que posso dizer? Tenho medo dos olhos, dos olhos dos outros, da pupila dilatada, contraída, da loucura do abismo dos olhos tão opacos quanto os meus como os daquela moça.

Um comentário:

Rodolpho Padovani disse...

Ainda que faltem palavras, os olhos sempre têm algo a dizer e quando nos vemos refletidos em outros olhos que nos mostram tão bem dá um receio, pois os olhos também guardam segredos.
Belo conto, me deixei levar nas palavras e me senti na palestra, observando tudo avidamente e encarando o desconhecido que levantou o queixo da estranha.

Abraços.