sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Do que você tem medo?


Do único banco que resta de uma praça sombria e há muito tempo abandonada, em um local quase esquecido pelos moradores da cidade, nada vejo se não as árvores e plantas mortas que um dia estiveram fortes e vivas. Olho para o céu escuro. A lua cheia é a lâmpada na penumbra da noite.
Quando o dia amanhece, a cidade toda fica cheia de luz e vida. Mas parece que até o sol tem medo de mandar raios para aquele lugar. Ele está sempre vazio, morto e sombrio. Quando é dia e me sento no banco, e olho para o céu, vejo que nenhum pássaro voa por ali.
Me pergunto o que poderia os assustar tanto...
Alguns tem medo do escuro. Outros não gostam de muita claridade. Alguns tem medo da solidão. E eu sou o contrário de todos esses seres. Gosto de ficar sozinha, do que é sombrio; Também não suporto a luz forte e escaldante do sol. Tanta força em iluminar irrita meus olhos e faz minha pele chorar suor.
Por isso eu passava minhas horas vagas naquela praça. Ali não tinha ninguém. Mal se viam sombras. Seria perturbador para alguma outra pessoa ficar ali. Mas eu gostava. Apesar de me lembrar da morte. Morte. Era disso que eu tinha medo. O lugar era um tanto assustador para uma pessoa normal. Mas eu não era normal. Tinha medo de morrer e gostava de um lugar que me lembrava morte, porque tudo ali era morto. Mas é que o silêncio e a falta de luz que havia lá, eram convidativos demais para mim. Lá eu encontrei o que eu gostava, paradoxalmente, refletido no que eu mais tinha medo.
Dia quinze de agosto, no dia do meu aniversário, joguei fora qualquer esperança da minha mãe em fazer uma festa de dezoito anos para mim. Sempre odiei comemorações. Ainda mais de aniversário. Para mim era um absurdo ter de envelhecer.
Rosana, minha pobre mãe, ficava desgostosa com meus gostos e principalmente com as coisas que eu dizia para evitar que ela me fizesse o que fosse. Eu gostaria muito de não ser assim. Mas certos instintos, a gente não consegue controlar.
Saí de casa, caminhei até a praça distante e abandonada. Me sentei no bom e único banco de sempre. Já era um tanto tarde. Mas eu gostava de ficar ali enquanto o sono num me pegava para me levar para casa. Deveria ser onze e tantas da noite. E eu estava sentada, olhando para os meus pés, pensando que já era um ano mais velha. Mas sem ouvir o som de nada, vi a presença de outro par de pés diante dos meus. Meus olhos subiram por eles, até encontrar um par de olhos. Era uma mulher, e seu nome era Safira. Seus olhos eram tão negros quanto a noite. Sua pele, tão pálida quanto a lua que estava no céu. Mas apesar da palidez que me lembrava doenças, ela era linda. Ela era a primeira pessoa que via ali em anos que eu freqüentava aquele local.
- Então... Você não gosta de envelhecer... Tem medo de morrer... – Ela começou.
- Como você sabe? –Indaguei assustada.
- Não há nada que você pense que eu não possa saber. Não precisa nem conversar por falas comigo, se preferir.
- Quem é você? – E pela primeira vez, eu tive vontade de correr dali.
- Eu? Sou a única pessoa por aqui, que pode te matar só para que você possa viver jovem e bonita assim, para sempre.
Fiquei olhando para ela, pensando no que pensar.
- Sei que hoje é seu aniversário, Raquel. Seria uma alegria enorme para mim poder te dar este presente.
- Ma, mas... Você vai me matar!
- É uma morte diferente. E eu já te disse o que ela vai te proporcionar. Acho que não preciso repetir.
Não tive tempo de responder. Só pensei em aceitar o “presente” de aniversário e então, num ímpeto, a boca de Safira estava em meu pescoço. Senti seus dentes cravados em minha carne. Quando dei por mim, estava no chão sujo por abandono, me debatendo. Algo que corria por minhas veias, fazia eu me sentir como se estivesse queimando por dentro. E talvez estivesse. Porque depois de quase uma hora me debatendo, não senti mais minha pulsação e meu coração já não batia. Algum tipo de fogo, que só queimou meu sangue.
Quando parei de sentir minhas veias em chamas, me levantei, e senti minha garganta seca demais. E toda aquela secura, me torturava.
- Você está sedenta de sangue, Raquel. Não se preocupe, querida. Me siga. Vamos!
E naquele momento eu não pensava em mais nada, a não ser na dor que machucava minha garganta. Então a segui. Safira me ajudaria a me livrar daquilo.
Nos movíamos tão rápido, que nossos pés pareciam não tocar o chão. Se eu não visse o solo na altura de como estivesse andando normal, eu juraria que estávamos voando. Mas estávamos caminhando. E muito rápido. As paisagens ao nosso redor apareciam e sumiam como borrões na noite escura. De repente paramos.
Estávamos no bairro mais pobre da cidade, e um mendigo dormia embrulhado num trapo que lhe servia como cobertor, numa calçada imunda. Tinha um cachorro de rua com ele também. E tudo ali, tinha um cheiro horrível. Mas havia um cheiro que me prendia naquele lugar fedorento. Um odor tão forte, tão irresistível, que começou a fazer com que eu não sentisse mais o fedor do ambiente.
- Ele está pronto para morrer, Raquel. Tanta pobreza o faz pedir para morrer. – Safira sussurrou em meu ouvido.
E num repente, como se algum barulho o tivesse despertado do sono profundo, o velho mendigo acordou assustado, e nos olhava com medo. Foi como se sentir a presença minha e de Safira, desse alerta de perigo para ele. Eu não sabia o que estava fazendo ali. Só seguia meus instintos. E esses mesmos instintos que tomavam minha consciência, me diziam que agora eu era outro tipo de pessoa. Uma morta imortal. E no fundo eu gostava disso.
O senhor estava apavorado. Eu nem estava tão próxima dele, e podia ouvir clara e perfeitamente o som do coração dele batendo, cada vez mais acelerado.
Cheguei mais perto do mendigo. Safira permaneceu-se imóvel, apenas observando o que ocorria. Quando me aproximei mais, percebi o cheiro convidativo ainda mais forte ao senti-lo entrar pelas minhas narinas. E então, um par de luzes vermelhas se acendeu na escuridão daquele bairro sujo, pobre, e mal iluminado. Eram meus olhos. Estavam da cor que tinha a matéria que exalava o cheiro que me fazia ficar ali.
- Você aí... Do que você tem medo? - Perguntei quase num sussurro. Minha voz suava macia e ameaçadora.
Mas antes que ele pudesse responder, eu já havia cravado meus dentes em seu pescoço. Alguém ali tinha medo de continuar a viver inutilmente. Transformei-o em um ser da minha espécie. A espécie que há pouco tempo eu também comecei a fazer parte.
Não o matei por mal. Minha espécie era a única a morrer e continuar vivendo para sempre. E vampiro nenhum era inútil. Em qualquer das hipóteses, a morte faz certos favores a certas pessoas. - Principalmente quando ela é a única que pode te salvar dos seus próprios medos. -

Uma vampira. Era isso que eu havia me tornado. Sequei todo o corpo do mendigo. Quando terminei, um pouco de seu sangue escorria da minha boca até meu queixo. Nisso, algumas gotas pingavam no chão. Minha garganta não estava mais ardendo.
E para alguém que nunca havia se sentido uma pessoa normal na vida que levava, aquilo tudo sim era o absurdo em normalidade. Ou pelo menos começava a ser. Porque sempre há um mundo, talvez muito diferente do qual vivemos, onde sentimos que nos encaixamos.

Agora eu sabia porque a praça era abandonada e sombria. Vampiros discretos a habitavam. Os mais intuitivos sentiam medo do lugar, e passavam longe dali. Afinal, quem tem medo de vampiros, não ia querer se deparar com um.

Um comentário:

Jéssica Trabuco disse...

Eu AMEI esse conto.
Eu sou apaixonada por vampiro e contos sombrios assim.
Amei o jeito que escreveu e passou as emoções nele.
Parabéns!